Artigo: - Caminha: o caminho à liberdade

 

Cláudia Gomes | Foto: Arquivo pessoal


Desde o início da colonização brasileira, o texto literário se faz presente. Mesmo que de forma discreta ou pouco poética, a escrita literária registrou as experiências do homem. Temos por exemplo, a Carta de Pero Vaz de Caminha, que é considerada por muitos literatos o primeiro texto literário nosso. Portanto, eis a obra inaugural da nossa literatura brasileira. Entretanto, segundo pesquisas do historiador Marcel Verrumo (2017), Caminha nunca foi de fato escritor. E esse feito ocorreu devido ao desvio da grande expedição às Índias, cujo escriba, que era contador, surgiu da necessidade de relatar ao Rei D. Manuel as proezas vistas e experimentadas naquele universo a desvendar. Assim, Caminha fez. E sua escrita gerou inspirações futuras a tantos outros poetas, como José Paulo Paes (1926-1998) que escreveu em seu poema “A-mão-de-obra” os seguintes versos:

São bons de porte e finos de feição

E logo sabem o que se lhes ensina,

Mas têm o grave defeito de ser livres.

Percebemos no poema acima, um recorte feito pelo poeta Paes da Carta de Caminha. Nele, é perceptível o que desejavam os lusitanos ao chegarem na nova terra: mão de obra sem custo.  Nas nossas salas de aula, ao estudarmos o Quinhentismo Brasileiro, deparamo-nos com o texto A CARTA DE PERO VAZ DE CAMINHA, escrito em 1500 e só descoberto muitos anos depois, no século XVIII, por José de Seabra da Silva (1732-1813). A ideia que esse estudo nos passa, é que somente Caminha teve o ofício de tal proeza. Não foi bem assim.

O chefe das embarcações era Pedro Álvares Cabral e este solicitou a muitos tripulantes relatos sobre o Novo Mundo. Caminha, no entanto, não poupou pena nem tinta. Escreveu dia e noite. Noite e dia. Tudo! Descreveu minuciosamente os primeiros contatos entre os europeus e os indígenas, o que eles viram e encontraram na nova terra. Foi realmente uma Carta extensa e cuidadosa. O que muitos de nós, estudiosos e pesquisadores em literatura brasileira ficamos a questionar é: por que um simples contador do Rei tornou-se escritor de repente?

Pois bem! Após o envio da descritiva carta ao Rei, Caminha não parou por aí. Pediu-lhe em uma carta, sem titubear, um grande favor. A filha de Caminha era casada com Jorge de Osório, acusado em 1496 de ter saqueado uma Igreja Católica e de ter machucado, cruelmente, um sacerdote. Estava, pois, preso. Caminha queria então o perdão do Rei a fim de ver sua filha feliz de novo. Como resposta à carta de pedido, obteve um não.

Meses depois da saída de Portugal, a expedição chefiada por Pero Vaz de Caminha retornou finalmente às terras indianas e, precisamente, no dia 16 de dezembro daquele mesmo ano, durante um episódio de negociação de especiarias, o grupo foi atacado por mais de trezentos homens bárbaros: indianos e árabes.  Ao retornarem a Portugal com uma tropa bem reduzida e de luto, os lusitanos entregaram ao Rei D. Manuel uma lista com os nomes dos mortos. Acreditem, o nome “Caminha” estava   presente. Comovido pelo que lera em suas mãos, o Rei finalmente atendeu ao pedido daquele que só queria ver a filha feliz. E sem mais delongas, mandou soltar Jorge Osório! O que aconteceu com o casal depois da soltura, não sabemos, mas podemos imaginar diversos momentos que a literatura gostaria muito de registrar!

Claro que muitas outras questões estão envolvidas nessas narrativas, mas entender o texto literário, a priori, como um texto também histórico, é buscar os pós e os contras da história da humanidade.

A Carta de Pero Vaz de Caminha é para nós um documento muito mais que histórico e literário, muito mais que informativo. É um documento de resistência, pois foi o pretexto perfeito para um “escritor” que usou as artimanhas da escrita para salvar a felicidade familiar.  Talvez as lágrimas derramadas por seus entes queridos ao saberem de sua morte tenham se misturado com as lágrimas da liberdade! Não iremos discutir aqui se o Rei agiu certo ou não, pois o que está em evidencia é o poder transformador do texto literário diretamente ou não.

Portanto, Caminha abriu para a humanidade não só caminhos às Índias ou ao Brasil, caminhos à liberdade, mas principalmente um caminho que fortalece a importância de ler e de escrever literatura.

Ademais, o contato com o texto literário, seja o escrito no século XVI ou escrito em nossa era, deve lançar ao leitor o que Rildo Cosson chama de “apropriação literária da literatura” (2020) para que haja a formação leitora através dos letramentos literários. Consequentemente, esses leitores, principalmente se estiverem no chão das escolas, buscarão, além dos conhecimentos específicos gerados pelas disciplinas que se utilizam do texto literário, experiências que os levarão a se relacionar com eles mesmos.

Finalmente, ao entendermos que o texto literário vai além das informações apresentadas, reconhecemos que o seu papel é, sobretudo, a formação do leitor literário. Pensando nessa formação, Cosson diz “se a presença da literatura é apagada da escola, se o texto literário não tem mais lugar na sala de aula, desaparecerá também o espaço da literatura como lócus de conhecimento” (COSSON, p. 14, 2014).

Em consonância com o autor, nós educadores devemos ressignificar a presença do texto literário. Um texto canônico, como a Carta de Caminha”, não precisa ser somente um pretexto para questões específicas, mas a partir dele, podemos envolver os leitores em questões além do dito. Podemos por exemplo, discutirmos o valor da palavra LIBERDADE.

Referências:

CORTESÃO, J. A carta de Pero Vaz de Caminha. Lisboa Portugália, 1967, 221 p. Disponível em: http://nonio.eses.pt/brasil/

RILDO, Cosson. Paradigmas do ensino da literatura. São Paulo: Contexto, 2020.

___. Letramento Literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2014.

VERRUMO, Marcel. História Bizarra da Literatura Brasileira. São Paulo: Planeta 2017.

PAES, José Paulo. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/José_Paulo_Paes

Autoria: Cláudia Gomes

A articulista, Cláudia Gomes, é mãe de três filhos e ama animais. Natural de Salvador, BA, radicada em Feira de Santana. Doutora em Educação. Mestra em Letras pela UNEB. Graduada em Letras Vernáculas (UEFS). Especialista em Língua Portuguesa: Gramática (UEFS) e Gestão Escolar pela UFBA. É professora da rede municipal de FSA e do Estado da Bahia, poeta, contista e escritora. Ocupa a Cadeira 2 e é vice-presidente da Academia Metropolitana de Letras e Artes de Feira de Santana e é titular da cadeira 36 da Academia de Letras e Artes de Feira de Santana. Ocupa a cadeira 54 da Academia Independente de Letras (PE), a 539 da Academia de Artes, Ciências e Letras do Brasil e a 139 da Academia Internacional de Literatura. Participa da ABAI assumindo a Cadeira 38. Participa do grupo Mulherio das Letras (Brasil/Portugal) e do Grupo Confralib.

 As ideias contidas neste artigo não correspondem, necessariamente, as ideias do jornal e são de responsabilidade da autora.



Fonte: O Liberal 


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