Reminiscências de Capanema: Boas lembranças dos velhos tempos

 Amigos, a frase “as feias que me desculpem, mas beleza é fundamental”, do eterno poeta Vinicius de Moraes, pode ser interpretada como um critério para separar o visual das outras qualidades. Mas em pleno século XXI, o machismo ainda se sobrepõe à competência, amarrota e desbota o tecido social de um mundo preconceituoso. Alguém duvida que o negacionismo, no nosso país, é mais presente do que imaginamos? Por isso faço questão de ressaltar a importância das mulheres na Capanema da minha infância e adolescência. Peço desculpas se errei ao citar alguns nomes.


Belas, determinadas, inteligentes e vencedoras


 Qual a importância das mulheres na formação dos conterrâneos da minha geração quanto a ética, a moral e a internalização desses valores para o resto de suas vidas? Certamente pelas mãos delas, as professoras, foram abertas as portas do saber e apontadas as escadas do acesso ao conhecimento. Desconheço quem iniciou a educação formal sob a orientação de um professor. Mas isso era apenas um adicional sobre o alicerce solidamente preparado pelas mães, apesar da pouca instrução pedagógica entre a maioria delas. Resultado: poucos desvirtuaram na vida.

 Iniciei os estudos na escola improvisada na residência da professora Raimunda, no bairro da Areia Branca. Jamais fugiu da minha lembrança a alegria de ter escrito o meu primeiro cabeçalho no caderno feito de papel almaço com as folhas presas por uma linha – o ano era 1959. Mas foi no banco corrido de madeira, apoiado numa rústica mesa coletiva, que adquiri o gosto pelo aprendizado contínuo. Não havia separação entre as séries dos alunos. Se a metodologia era questionável, a valorização do conhecimento ficou para o resto da vida. Tem punição muito pior.

 Da mesma forma que o meu caso particular pode ser contado, todo o ensino primário estava nas mãos das mulheres. Da direção às salas de aulas, o que ficou na lembrança são nomes como Carmem, Siqueira, Carmélia, Terezinha, Vaneide, Margarida e as Irmãs do Preciosíssimo Sangue do Instituto São Pio X. Toda a base educacional foi disseminada desta maneira. Talvez por isso havia o costume de se dizer que a professora era a nossa segunda mãe. Um traço marcante era que nunca vi nenhuma delas sorrindo durante as aulas. Disciplina acima de tudo! 

 Mas nem só de ensino formal vivia a sociedade capanemense. Muitas delas atuavam no comércio. Lembro das senhoras: Rosalina, na Casa Pérola; Juliana, no Hotel Carioca; Dedé, na Sempre Viva; Núbia, no Centro Comercial; e Neuza, no Caçula Bar. Elas atuavam num ambiente tipicamente masculino. Também não posso esquecer a seriedade da dona Gerusa Buarque, no seu cartório. Nas chamadas repartições tinha as enfermeiras Mimita, Noemi e Sulamita, no SESP. No DER, a Onilde e a Semar. Na SUCAM, a Myriam. Isso era pouco, mas muito significativo! 

 Afirmar que a mulher é do sexo frágil pode ser questionado pela tenacidade da dona Enide, baixinha e franzina, que consertava os pesados encerados Locomotiva que protegiam as cargas dos caminhões. Brinquei muito no enorme quintal da sua casa. Mas algo inesquecível era ver a japonesa da família Noguchi andar mais de 2 quilômetros, puxando uma carrocinha com verduras para vender na feira do mercado e depois fazer o mesmo percurso, no sol escaldante, de volta para sua casa. Não lembro da sua fisionomia estampando cansaço ou indignação por causa disso.   

 O costume da população local era claramente discriminatório nos cargos de destaque com relação às mulheres. Que eu me lembre nunca uma delas ocupou a Prefeitura Municipal. Mas ninguém esqueceu que a primeira vereadora da cidade foi a saudosa Vânia Buarque. Nem que tivemos uma juíza, a Dra. Lúcia – veio de fora, mas exerceu a sua autoridade. Também uma raridade na época foi ver a professora Vaneide dirigindo o seu Gordini às escolas para ministrar suas aulas. Isso pode ter se apagado na memória da cidade, mas na minha continua muito vivo.

 As opções para as atividades no aprendizado normal e extracurriculares também eram conhecidas. Quem não queria estudar na rede pública ou no São Pio X podia frequentar as escolas das professoras Marieta e Nazaré. Os que buscavam um diferencial na qualificação, como a datilografia, tinham escolhas como a dona Nenzinha e outras que não lembro dos nomes. Daí que, aos 10 anos, fui aprender nas Remington e Olivetti, memorizando os dedos certos das mãos esquerda e direita ao usar o teclado disposto em degraus. Por isso, tirei o meu valioso Diploma!

 Seguramente a maioria da minha geração veio ao mundo pelas mãos da dona Raimunda Félix. Ela não tinha formação técnica sobre o assunto, mas se orgulhava de nunca ter cometido um erro fatal nos partos que realizou. Como as famílias eram numerosas quanto aos filhos, ela devia ser a responsável por muitos nascimentos. Lembro que era uma pessoa alegre, de bem com a vida, que se contentava com o pouco reconhecimento pelo seu importante trabalho. Talvez merecesse uma homenagem pública por essa contribuição inesquecível pela carência da época.

 A prática dissimulada do Clube do Bolinha, onde mulher não entra, era normal nas repartições em que se valorizava o conhecimento e a qualificação. Por isso, mereciam louvores os casos isolados. Lembro que a minha tia Margarida foi uma das poucas mulheres a entrar no seleto quadro do Banco da Amazônia, o BASA. Também o preconceito que elas eram fracas em Matemática foi derrubado pela Elinalda Veríssimo, que desbancou muitos sabichões, nas turmas mistas, ao lidar com os números. Conseguem imaginar como isso foi assimilado na época?  

Muito antes de Capanema ser reconhecida como a Terra de Mulheres bonitas por causa dos títulos de Miss Pará, nos concursos de beleza, os destaques citados superavam essa exigência imposta pelo mundo das imagens e da exibição nas vitrines da moda. Como não valorizar o esforço da Raimunda do Vale, uma moça que vinha a pé ou de bicicleta, sob chuva ou sol, da 3ª Travessa da Estrada de Salinópolis, cerca de 6 quilômetros, para frequentar aulas nas escolas da cidade? A busca do conhecimento pode embelezar qualquer pessoa diante do mundo.

Inesquecíveis também são os cheiros e os sabores do tacacá das donas Bené e Laura. Quem passava perto do coreto da Praça Matriz ou da calçada da Praça Magalhães Barata, era fatalmente atraído por essas tentações. Mas os alunos do Ginásio Industrial Professor Oliveira Brito, na hora do recreio, podiam apreciar o saboroso mingau de milho da banca da dona Délia, que ficava entre a Casa Paroquial e o Colégio. Havia quem preferisse o bolo ou a tapioca com o cafezinho. Como esquecer desses detalhes nesta fase inapagável da carreira estudantil?

 Quem gostava de dançar se lembra da incrível Neuza Neves. Ela era a materialização da vontade de viver com prazer e alegria, apesar da deficiência física em uma das pernas. Levava uma vida como se não tivesse limitações: andava de bicicleta, dançava e praticava atividades esportivas. O notável é que ela brilhou além dos limites da nossa cidade, se apresentando em palcos da capital do estado, ganhando admiração e respeito por onde compartilhou o seu talento, cantando e embalando sonhos e esperanças de muitos jovens. Viveu intensamente a sua vida!    

 Algumas mulheres, no entanto, ficaram conhecidas pela vida dedicada à fé religiosa. O exemplo mais lembrado na comunidade local foi a dona Alice Oliveira, esposa do seu Alfredo. Ela ia todos os dias, pela parte da tarde, à Igreja Matriz, infalivelmente, para rezar e cumprir um ritual que poucos conseguiam manter. Normalmente estava vestida de preto, seguia a pés levando o livrinho e o terço para contar as Ave-Marias e os Pais-Nossos que rezava pontuando as orações. Até onde chegou ao conhecimento público a sua rotina não mudou com o passar do tempo.

 Sabe-se que as comodidades da vida atual não existiam naquela época. Por isso, a dupla jornada reclamada hoje está muito aquém do serviço braçal das mães que trabalhavam fora de casa. Máquina de lavar roupa? Nem pensar! Fralda descartável? Todas eram laváveis e reusáveis! Alimentos semiprontos? Isso era uma coisa de pura ficção! Forno micro-ondas? Eletrodoméstico inimaginável! Água encanada nas torneiras? Um luxo exclusivo de uma minoria! Portanto, o consagrado “ser mãe é padecer no Paraíso” não contrariava a realidade. Mas todas venceram!

O resumo disso tudo é que os nichos predominantemente masculinos na cidade como advocacia, medicina e odontologia cederam espaço às mulheres. As mudanças foram gradativas, mas vieram para ficar em definitivo. Não me lembro de nenhuma dessas atividades liberais ocupadas pelas batalhadoras e competentes heroínas da época. Mas a determinação, a inteligência e a persistência as tornaram vencedoras numa competição desvantajosa para elas. Isso, além dos honrosos títulos na beleza física, deveria enchê-las de um merecido orgulho.  


Texto: J R Ichihara - 15/08/2021


**O Autor é capanemense, pertencente a uma tradicional família, atualmente morador da cidade de Natal, Capital do Estado do Rio Grande do Norte.











Imagem: Divulgação:
Edição: Alek Brandão


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