A surdez de Beethoven
Mesmo surdo, Beethoven compôs obras grandiosas. A ‘Nona Sinfonia’, criada poucos anos antes de sua morte já totalmente surdo, foi declarada patrimônio mundial pela Unesco.
A surdez de Beethoven
A música é mesmo sempre outra coisa. Ela pode salvar a vida dos poços mais fundos de desespero e mágoa
– por Marcio Tavares D’amaral*
Na origem da nossa cultura, na metade grega do nosso DNA, está Homero, um poeta cego. O poeta inglês Milton também não enxergava. Os poetas ouvem as palavras e a música dos seus poemas. Escutam as rimas. Medem pelo som a extensão dos versos. Não precisam ver o lançamento das palavras no papel. Essa é a hora em que elas morrem. Os poetas cegos são poupados desse funeral. Toulouse Lautrec sofria de nanismo e tinha um corpo atrofiado. Mas nada o impedia de ir aos cabarés e às academias de balé. Pintou o can-can de La Goulue e as meninas nos seus pas-de-deux. O Aleijadinho amarrou seu formão e seu malho nos tocos das mãos deformadas e extraiu profetas da pedra sabão. E esculpiu altares e púlpitos para a maior glória de Deus. As deficiências de todos esses artistas não os impediram de criar a grande beleza. Mas Beethoven era surdo.
Beethoven era surdo — e pianista, e compositor. Não um pianista qualquer. Foi um virtuose, esteve entre os melhores de Viena. E, meu Deus, que compositor! E surdo. O anúncio da fuga do som dos seus ouvidos privilegiados foi muito cedo. Aos 25 anos já se queixava. Aos 31 foi ao médico. E era isso mesmo. Estava perdendo a audição. E a perdeu, progressivamente, até a morte, aos 57 anos, sem distinguir mais nada dessa matéria sonora de que se fez sua vida. O grande Beethoven. O que virou a música de cabeça para baixo. O das 32 sonatas, dos cinco concertos para piano e um para violino, dos quartetos estonteantes. O das nove sinfonias. Surdo. Grande parte da sua obra lhe soou de longe, como de outro mundo, nas suas execuções públicas. Não ouviu mais nada dos quartetos finais. Nem da imensa “Nona Sinfonia”. Nada. Mas entre o cérebro e o coração, driblando os ouvidos inúteis, toda a música estava guardada. Esperava alguém que a ouvisse sem roupas, nua, desmaterializada de sons. Alguém que conhecesse sua essência íntima, que a ouvisse por dentro, sem precisar escutá-la de fora. Beethoven não podia corrigir a pauta por ouvir tocar. Corrigia como Deus talvez tenha ensaiado com o barro. Regeu o caos do silêncio.
Depois da flauta muda escreveu um testamento. Confessou que poderia se matar. Não o faria porque ainda não tinha dito tudo. Viveu com o desespero do testamento, superou-o nas suas pautas imaginárias, que voavam na sua cabeça antes de irem manchar as folhas de papel. Totalmente fora dos contatos sociais — tinha vergonha de confessar que não conseguia ouvir a flauta de um pastor —, compôs aos espasmos, aos berros, enjaulado e terrível na sua solidão. Um dia quis reger sua ópera, “Fidélio”. E foi o desastre. Não ouvindo o que se tocava e cantava, leu a pauta no seu próprio ritmo e comandou desencontradamente a orquestra e os cantores. A cidade viu o gênio esmagado pela música que já não ouvia. Muitos saíram da sala. Outros ficaram e aplaudiram. Beethoven não ouviu os aplausos. Estava deserto de qualquer som. Também não ouviu as vaias. Houve vaias. Havia gente assim.
Quando decidiu compor a “Nona Sinfonia”, considerada a mais excepcional de todas quantas foram compostas em todos os tempos, a surdez era total. Se não fosse, será que teria ousado incluir um coral no último movimento? Coisa nunca feita. No seu diário registrou: compondo a “Ode à Alegria”. E também: passando fome. Se não estivesse passando fome, teria escolhido esse poema de Schiller, explosão de entusiasmo e força de vida? Quem pode saber? A fome ensina, a fome fala. Mas Beethoven era surdo.
A música é mesmo sempre outra coisa. Ela pode salvar a vida dos poços mais fundos de desespero e mágoa. Pode inventar para a humanidade ferida uma língua alegre para viver. Pode levantar as pedras e encantar as nuvens. E fazer os surdos que somos ouvirem as pautas que por toda a eternidade os anjos tocam para nós.
Edição: Alek Brandão
Texto e Imagem: Revista Prosa Verso e Arte
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