Uma reflexão sobre a 'Música', pelo mestre Ariano Suassuna
“A Natureza é bela quando tem o aspecto de uma obra de arte. A Arte, por sua vez, não pode ser chamada bela senão quando, deixando-nos conscientes de que é Arte, oferece-nos, entretanto, o aspecto da Natureza… Em outras palavras, a Arte deve ter a aparência da Natureza, se bem que se tenha consciência de que é Arte… Uma produção da Arte parece natural sob a condição de que as regras, que são a única coisa que permite à Arte ser o que ela deve ser, tenham sido observadas exatamente. Mas que este acordo não seja adquirido penosamente, que ele não deixe suspeitar que o artista tinha a regra sob seus olhos e as faculdades da alma entravadas por ela.”
– Kant. em “Crítica do Juízo”, citado em “Ariano Suassuna – Iniciação à estética”. 12ª ed., Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2012.
“a Música é a mais pura de todas as Artes”
– Ariano Suassuna
CAPÍTULO 31 – A MÚSICA – DO LIVRO V ‘UNIVERSO DAS ARTES’
Música Apolínea e Música Dionisíaca
Foi um pouco de propósito que escolhemos a Música para dela falar imediatamente depois de termos analisado as Artes plásticas: é que estas são, por natureza, Artes abstratizantes, e a Música — ou, pelo menos, a Música pura — é a mais abstrata de todas as Artes. Falamos em Música pura, aqui, no sentido de Música puramente instrumental, considerada isoladamente do canto e das palavras.
Por outro lado, assim como estabelecemos, com base em Wölfflin, duas linhagens principais para a Pintura, podemos fazer o mesmo em relação à Música, distribuída em duas linhagens, a apolínea e a dionisíaca.
A Música apolínea corresponde, no caso, ao caminho linear, da Pintura. É a Música clássica, ou melhor, a Música feita pelos compositores de temperamento clássico, equilibrada, harmoniosa, serena, racional, luminosa, ordenada, clara e límpida. É a mais pura de todas. É a Música dominada pelo espírito e pela forma do contraponto. Nesse sentido, podemos dizer que a pintura serena e linear de Botticelli corresponde à música de Vivaldi.
Já a Música dionisíaca corresponde à linhagem pictórica que estudamos no campo da Pintura. É Música de contrastes violentos que chegam à dissonância; dramática, vibrante, mais harmônica do que contrapontística, violenta, “impura” pela presença quase “literária” de sentimentos e expressões estranhas ao campo da Música; nela, a harmonia é conseguida como uma vitória sobre a desordem, como uma união de contrários, para usar a expressão de Santo Agostinho. Assim, podemos comparar a música de Beethoven, que pertence a esta linhagem, com a pintura de Goya, Miguelângelo ou El Greco.
Música Clássica, Barroca e Romântica
Aqui temos de fazer, como antes em relação ao Dramático, algumas referências ao problema da terminologia usada em relação à Música, principalmente por causa da palavra clássico que é, normalmente, usada com dois ou três sentidos diferentes. Ordinariamente, chama-se clássica à Música que se opõe à popular. Como, porém, isso causaria confusão, está começando a ser adotado para ela o nome mais geral e amplo de Música erudita, subdividida em clássica, barroca, romântica etc.
Mesmo feita esta ressalva, porém, ainda temos que fazer outra advertência a respeito da terminologia musical: é que, no campo da Música, existe uma espécie de descompasso em relação às outras Artes. Foi por isso que, há pouco, falando da linhagem apolínea da Música, preferi dizer que ela era característica dos temperamentos clássicos: preferi dizer assim porque, enquanto no campo da Pintura, os barrocos são claramente dionisíacos, no da Música compositores barrocos, como Vivaldi, são ainda artistas de temperamento clássico, apolíneo, harmonioso e linear.
É verdade que, num barroco como Bach encontramos, por um lado, uma certa linhagem mais apolínea, mais “pura”, mais límpida, alegre e, no sentido que acabamos de explicar, “clássica”: é a linhagem dos “concertos brandemburgueses”, por exemplo, ou daqueles nos quais a influência de Vivaldi está mais presente. Por outro lado, encontramos outra linhagem, a dos oratórios e “paixões”, em que as grandes massas corais, fundindo-se com a música orquestral, anuncia, já, o barroco bachiano como primeira manifestação romântica de dissolução do clássico. Esta última linhagem é a responsável pela comparação que tem sido feita da música de Bach com uma catedral. Mas, para ser preciso, é somente com o primeiro grande romântico, Beethoven, que vamos encontrar o espírito dionisíaco realmente liberto, numa exaltação que vai encontrar seu auge na Nona Sinfonia, obra na qual os elementos literários e teatrais da música de Beethoven se tornaram tão violentos que ele sentiu necessidade de recorrer às palavras para expressá-los. E isso nos leva a examinar outra face do problema do qual estamos tratando: o das relações entre as duas linhagens musicais com a música instrumental e com o canto.
A Música Pura e o Canto
Lembremos, em primeiro lugar, que a Arte musical, em suas relações com as palavras e com os sentimentos e acontecimentos por elas expressos, tem quatro tipos fundamentais: a Música puramente instrumental, a mais abstrata, pura e plástica, se se pode dizer assim, isto é, aquela que se baseia exclusivamente na combinação e nos efeitos de ritmos, timbres, frases musicais etc.; a Música que, sendo instrumental, pretende, porém, “descrever” certas coisas ou “expressar” sentimentos, como Clair de Lune, de Debussy, ou como o poema sinfônico Os Prelúdios, de Liszt; a Música que se vale da Poesia para descrever ou expressar esses sentimentos mais diferenciados da alma humana; e finalmente a Ópera, que ao se valer da ação teatral, forma, já, uma outra Arte, pertencente ao grupo das Artes de Síntese. Esta última está, portanto, fora do campo estritamente musical, e será examinada depois, juntamente com as outras Artes de seu grupo.
A Música que chamamos apolínea inclina-se, como é evidente, pelo tipo mais puro e abstrato de composição. É bastante ouvirmos um concerto de violino de Vivaldi para verificar que a valorização dos elementos formais e puramente musicais é uma característica fundamental do artista. Os compositores desse tipo, mesmo quando fazem músicas cantadas, fazem do canto, se assim podemos nos expressar, um elemento mais musical do que literário. As palavras são tratadas mais como elementos de musicalização de um ritmo poético do que, mesmo, como signos da expressão literária. Quer dizer: mesmo na Música de canto apolínea do período do Barroco musical, se podemos discernir algum sentimento será um daqueles três ou quatro sentimentos fundamentais da alma humana: o da melancolia austera, o da alegria serena, o da profunda e grave exaltação religiosa; mesmo isso, porém, expresso através de elementos puramente musicais.
Já a Música composta pelos artistas de espírito dionisíaco é bastante diferente. Pode-se dizer, mesmo, que aqui ocorre o contrário: na Música apolínea, mesmo quando o artista lança mão do canto, existe, como acabamos de dizer, um predomínio dos elementos mais puramente musicais; na Música dionisíaca, mesmo quando o compositor faz composições puramente orquestrais, sentimos, nelas, a tentativa de descrever paisagens ou estados de espírito, sentimentos diferenciados da alma e até reflexões filosóficas sobre o destino humano, por exemplo. Para prova disso, basta ouvir o Stabat Mater, de Pergolesi; apesar de ser uma música na qual o compositor lançou mão das palavras, trata-se, sem dúvida, de obra essencialmente musical e plástica. Já as sinfonias de Beethoven, mesmo sem se falar da Nona, são músicas “literárias” e meio “dramáticas”, umas descritivas, como a Pastoral, outras mais teatrais, como a Quinta Sinfonia.
O Poema Sinfônico
Aliás, tudo isso fica bastante claro se analisamos historicamente o desenvolvimento da obra de Beethoven: partindo-se das suas primeiras sinfonias, aquelas nas quais a influência classicizante e apolínea de Mozart e Haydn está ainda presente, vemos o caráter sentimental e dramático acentuar-se cada vez mais até chegar à Nona Sinfonia na qual os sentimentos e a reflexão exigiram uma expressão tão diferenciada que o compositor teve de recorrer a um poema de Schiller para dizer o que pretendia. Com a Nona Sinfonia o chamado “drama lírico” de Wagner — obra operística e, portanto, pertencente, já, ao campo das Artes de Síntese — estava anunciado. Beethoven, se tivesse vivido mais, teria, talvez, partido para ele. E sabe-se, aliás, da influência extraordinária que a Nona Sinfonia exerceu nas concepções musicais e teatrais de Wagner, que consagrou a ela um estudo minucioso e entusiástico.
Outro fato significativo a respeito do assunto do qual estamos tratando foi a aparição, no campo da Música, do “poema sinfônico”, característico do romantismo do século XIX e que surgiu, ao que parece, por influência do mesmo estilo beethoveniano. O “poema sinfônico” é uma música aparentemente instrumental, mas na qual, de fato, apesar da ausência de palavras, o elemento literário é preponderante, como, aliás, seu próprio nome demonstra. Aliás, voltando-se um pouco para trás no tempo e revelando como, mais uma vez, o Barroco é a primeira manifestação romântica de dissolução do Clássico, podemos rastrear pelo menos uma obra barroca antecessora da Sinfonia Pastoral, de Beethoven: é As Quatro Estações, de Vivaldi, que, às vezes, parece ter levado seus ecos ao movimento que, na Sexta Sinfonia, descreve a tempestade. Mas, deixando isso de lado, e também sem se falar na Pastoral, obra em que as descrições literárias são realizadas de propósito, podemos dizer que as sinfonias de Beethoven são, já, de fato, os primeiros “poemas sinfônicos”. Na maior parte delas, são inúmeros os qualificativos próprios das Artes literárias que se atribuem à música de Beethoven: dramático, trágico etc. Até mesmo a respeito das sonatas, forma por natureza mais puramente musical, uma delas é chamada de Sonata Patética.
Na verdade a música de Beethoven, principalmente a orquestral, vasada em grandes massas harmônicas e contrastes de todo tipo, é quase uma obra literária ou teatral expressa em termos musicais. Pode-se perfeitamente observar, nela, sentimentos e ideias lutando por uma forma musical de expressão.
Mas o “poema sinfônico” não se contenta somente com isso. Vai mais longe, procurando apoio na Pintura, na Poesia ou mesmo em ambas, e ainda em outro suporte qualquer, até histórico, às vezes. Tudo lhe serve, contanto que a Música não valha por si mesma e o espírito dos ouvintes seja preparado, por todas as formas sentimentais e literárias, para uma forma de encantação complexa e, de certa forma, estranha ao campo musical. O Romantismo teve papel saliente no aparecimento ao movimento que, na Sexta Sinfonia, descreve a tempestade. Mas, deixando isso de lado, e também sem se falar na Pastoral, obra em que as descrições literárias são realizadas de propósito, podemos dizer que as sinfonias de Beethoven são, já, de fato, os primeiros “poemas sinfônicos”. Na maior parte delas, são inúmeros os qualificativos próprios das Artes literárias que se atribuem à música de Beethoven: dramático, trágico etc. Até mesmo a respeito das sonatas, forma por natureza mais puramente musical, uma delas é chamada de Sonata Patética.
Na verdade a música de Beethoven, principalmente a orquestral, vasada em grandes massas harmônicas e contrastes de todo tipo, é quase uma obra literária ou teatral expressa em termos musicais. Pode-se perfeitamente observar, nela, sentimentos e ideias lutando por uma forma musical de expressão.
Mas o “poema sinfônico” não se contenta somente com isso. Vai mais longe, procurando apoio na Pintura, na Poesia ou mesmo em ambas, e ainda em outro suporte qualquer, até histórico, às vezes. Tudo lhe serve, contanto que a Música não valha por si mesma e o espírito dos ouvintes seja preparado, por todas as formas sentimentais e literárias, para uma forma de encantação complexa e, de certa forma, estranha ao campo musical. O Romantismo teve papel saliente no aparecimento texto de Lamartine:
“Será a nossa vida alguma coisa a mais do que uma série de prelúdios a esse canto desconhecido, cuja primeira e solene nota é entoada pela Morte? O Amor forma a aurora encantada de toda existência. Mas qual é a alma cruelmente ferida que, ao sair de uma dessas tempestades, não procura repousar suas lembranças na calma tão doce da vida dos campos? Entretanto, o homem não se resigna a fruir por muito tempo da benfazeja ternura que o encantou primeiro no seio da Natureza. E quando as trombetas fazem soar o sinal de alarme, ele corre ao posto do perigo, mesmo que seja a Guerra que o chame às fileiras, a fim de reencontrar no combate a inteira consciência de si mesmo e a plena possessão de suas forças.”
Não acredito que, sem o texto, pelo simples fato de ouvir a música de Liszt, o ouvinte chegue a formular ideias e sentimentos tão literariamente diferenciados e definidos quanto aqueles que o próprio poema desperta.
Note-se, mais uma vez, que não se trata, no caso, de discutir a legitimidade ou ilegitimidade do “poema sinfônico” ou da música descritiva. O poema sinfônico é legítimo, desde que a música valha por si mesma, como música. É ele uma espécie de elemento de ligação entre a Música instrumental pura e a Ópera. A obra de Debussy intitulada Clair de Lune é de grande qualidade musical. O que eu acho pouco provável é que, no caso de Debussy não ter dado esse nome à sua composição, os ouvintes chegassem, somente pela música, à conclusão de que ali havia uma alusão ao luar. Vamos mais longe, até: se o autor não tivesse dado esse nome à obra, nós poderíamos atribuir-lhe uns quatro ou cinco igualmente convenientes, inclusive sem colocar, entre eles, o de Clair de Lune. E provavelmente os ouvintes seguiriam as outras sugestões literárias com a mesma docilidade com que seguem as que o autor insinuou através do título.
Coisa semelhante ocorre com a Sonata ao Luar, de Beethoven, sendo que, neste caso, o autor nunca lhe deu esse nome: originalmente a obra chamava-se Sonata quase Fantasia. Com a exacerbação do espírito romântico foi que, posteriormente, ligaram o movimento inicial da sonata ao “luar”, acrescentando a isso uma porção de histórias sentimentais a respeito de uma bela moça cega a quem Beethoven pretendera dar a ideia — para ela, de outro modo, impossível — de luar.
O risco que se corre aí é, portanto, esse: o de fazer da Literatura — nem sempre boa, aliás — uma espécie de muleta para compensar as falhas da Música. Fora daí, e lembrando sempre apenas que a Música é a mais pura de todas as Artes, é perfeitamente legítimo que os compositores de temperamento mais complexo, menos abstrato, lancem mão de sugestões estranhas ao campo mais estritamente musical, da mesma maneira que os pintores figurativos se valem dos objetos e figuras da Natureza como assunto de seus quadros.
– Ariano Suassuna – Iniciação à estética. 12ª ed., Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2012.
Edição: Alek Brandão
Fonte: Revista Prosa Verso e Arte (texto e imagens)
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