Entre a pele e o espírito de Zélia Duncan, os 40 anos de carreira questionando o mundo
Artista celebra tempo de carreira com novo álbum, que se propõe a ser um registro do tempo atual
Traduzir as dúvidas e dores do momento atual em música foi a forma que Zélia Duncan encontrou de celebrar os seus 40 anos de carreira. Com o lançamento do álbum “Pelespírito” na última sexta-feira (21), ela comemora a possibilidade de se expressar por meio da música ao longo destas quatro décadas. O disco de 15 faixas também marca o retorno de Zélia à Universal Music, companhia pela qual lançou álbuns como “Sortimento” (2001), “Eu Me Transformo em Outras” (2004), “Pré Pós Tudo Bossa Band” (2005), entre outros.
Quando o Brasil segue ainda enfrentando duramente a pandemia de covid-19, a festa da carreira de Zélia ganha outros ares: sem deixar de ter música, mas também mantendo os pés na realidade. Em entrevista exclusiva ao jornal O Liberal, a artista falou sobre a celebração em meio a um momento caótico.
"Estamos fazendo como é possível, ‘na medida do impossível’, como diz a música. A gente compôs essas músicas e acaba que esse disco tem a pretensão de ser um pequeno documento do que estamos vivendo. E assim, até os 40 vira um delicioso pretexto, algum motivo para comemorar no meio desse caos, desse luto e toda a incerteza que estamos vivendo, mas estamos vivendo”, descreve Zélia, que começou a cantar aos 16 anos.
Em “Pelespírito”, faixa título que também abre o disco, a artista diz que trata-se de uma descrição literal do momento em que compôs a canção. “Tô pelespírito / tô por fio dessa minha blusa”, diz ela na faixa, onde também repete que está “sem tirar os olhos do mundo”.
“Acho que é um pouco de como todos nós estamos. Tem muito do meu temperamento nisso, mas acho que tem muita companhia aí, porque estamos sentindo. Quando eu fiz essa letra, estava exatamente do jeito que está descrito ali, sabe? Estava assim, um vazio estranho, e esse negocio entre a matéria, entre a pele repuxada, ver gente morrendo, ver o nada diante de tudo o que estava rolando, ver a irresponsabilidade; e ao mesmo tempo, nós artistas, presos em casa, cerceados da nossa profissão que prevê encontro. Então todo mundo teve que reinventar um jeito de estar, e essa letra, naquele dia me descreveu literalmente, e eu não consegui mais nem desgrudar uma palavra da outra, sabe?”, diz Zélia.
Em 15 canções tão íntimas e confessionais, Zélia passeia por ritmos como folk e country, rock´n´roll, sertanejo nordestino e pantaneiro, e blues. “Pelespírito” ainda é guiado por três questionamentos que também dão nomes a três faixas distintas: “Viramos Pó?”, “Onde é que isso vai dar?”, e “O que se perdeu?”.
“Não daria para mim, sendo quem eu sou, ficar falando ‘que dia lindo, hoje vamos sair’, fazer uma coisa ufanista ou otimista e vazia. Eu não sou essa pessoa. Então eu prefiro lidar com a minha tristeza desse jeito aí, fazendo perguntas. Tem três perguntas explícitas: ‘onde é que isso vai dar?’, ‘viramos pó?’, e ‘o que se perdeu?’. Essas perguntas estou me fazendo há mais de um ano, e quero que façamos elas juntas porque acho que vão levar a gente a algum lugar. Por que que a gente ficou assim? Por que a gente escolheu essa situação pra gente? Por que ficamos tão diferentes uns dos outros a ponto do agente não se suportar? O que houve? Esse disco está tentando perguntar isso também”, explica.
Celebrar o orgulho nunca é demais
Na festa de Zélia em formato de disco não falta espaço para o amor, e para celebrar o amor. Na faixa “Nossas Coisinhas”, ela fala do afeto pela artista plástica Flavia Soares, sua esposa.
“Isso para mim é uma conquista, uma conquista imensa”, descreve Zélia sobre conseguir falar sobre o seu amor por meio da música. “Eu me descobri gay no mesmo ano que comecei a cantar. Então eu me vi diferente no mesmo ano que comecei a cantar, mas foi um longo caminho até conseguir falar disso com naturalidade. Então fico muito feliz e honrada de poder passar para gerações de hoje o que eu aprendi até com as gerações mais jovens também, que é o imenso orgulho de ser dessa comunidade. A minha decisão em falar disso com mais do que naturalidade é com amor mesmo”, declara Zélia, destacando também a troca de referências com uma geração mais nova da arte, que vem escancarando portas para a comunidade LGBTQIA+.
A cantora relembra o momento em que conheceu a atriz Bruna Linzmeyer, para as gravações do curta-metragem “Paciência Selvagem”, de Érica Sarmet. O filme abordava a visibilidade lésbica, conta Zélia; e foi nesse momento que o encontro de geração tomou um significado engrandecedor.
“Eu era a pessoa que representava uma homenagem a Vange Leonel, uma mulher ativista maravilhosa, escritora e cantora, que infelizmente já morreu. Eu não a conheci, mas o nome do meu personagem no filme era Vange, e a Bruna era uma das atrizes. E ela é uma das pessoas, junto com aquelas outras meninas ali, que me ensinaram muita coisa, mas que ao mesmo tempo me tratavam como uma influência para elas. Então acho que a coisa mais legal da vida são os encontros, a gente valorizar os encontros e reconhecer neles o que eles têm para nos dar”, conta.
O momento refletiu ainda em uma das frases da canção “Pelespírito”. “Falei ‘tô musa, to muda / tô nadando de braçada nas palavras’. E uma das palavras é orgulho. Uma das palavras mais importantes da minha vida, e que quero deixar para quem me ouve. Isso tem que permear nossa vida e nos dar coragem”, completa.
Conexão paraense
Ao longo desses 40 anos, Zélia fez alguns shows na capital paraense, pela qual ela diz ter um carinho especial. Mas essa relação ficou um pouco mais estreita no último ano, isto por conta de uma parceria com o paraense Arthur Nogueira. Juntos, eles fizeram lives, participaram de programas, fizeram um show conjunto para a edição virtual do Festival Se Rasgum, e também gravaram a canção “Dessas manhãs sem amor”, lançada em abril de 2020.
“Quem me colocou em contato com ele foi o DJ Zé Pedro, e a gente começou independentemente a se falar. Eu falei para ele ‘nossa, que voz linda’, ele falou algumas coisas legais para mim sobre o meu trabalho. Um belo dia ele me mandou uma melodia, e virou uma música que eu adoro, ‘Nessas Manhãs sem amor’”, conta.
“A primeira vez que nos encontramos foi para esse festival, e eu fiquei muito honrada de ser para Belém. Eu adoro essa terra, adoro toda atmosfera que Belém tem. É um lugar muito diferente do resto do Brasil, é um lugar perfumado, e o Arthur foi uma dessas alegrias que Belém me deu. Já sou muito amiga de Leila Pinheiro, e o Arthur foi o jovem artista que Belém me deu, um parceiro e uma voz muito especial”, descreve Zélia.
Edição: Alek Brandão
Fonte: O Liberal (texto e imagens)
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