Clarice Lispector entrevista Elis Regina
“Eu me encontrei tanto nessa coisa de cantar que jamais pensei em procurar outros caminhos.”
Pequenina, de traços delicados, cabelo cortado rente à cabeça, movimentos livres, gesticulando um pouco, com uma inteligência alerta e rápida, facilidade de expressão verbal – eis Elis Regina, pelo menos uma delas.
Clarice Lispector – Por que você canta, Elis? Só porque tem voz magnífica? Conheço pessoas de ótima voz que não cantam nem no banheiro.
Elis Regina – Sei lá, Clarice, acho que comecei a cantar por uma absoluta e total necessidade de afirmação. Eu me achava um lixo completo, sabia que tinha uma voz boa, como sei, e então essa foi a maneira para a qual fugi do meu complexo de inferioridade. Foi o modo de me fazer notar.
Clarice Lispector – O que é que você sente antes de enfrentar o público: segurança ou inquietação?
Elis Regina – Inquietação. Sou segura em relação ao que eu vou fazer, mas profundamente inquieta quanto a reação das pessoas que me ouvirão.
Clarice Lispector – Se você não cantasse, seria uma pessoa triste?
Elis Regina – Seria uma pessoa profundamente frustrada e que estaria buscando uma outra forma de afirmação.
Clarice Lispector – Qual seria essa outra forma de afirmação?
Elis Regina – Não tenho realmente a menor ideia, porque eu me encontrei tanto nessa coisa de cantar que nunca pensei nisso.
Clarice Lispector – Você tem um tipo extrovertido. É o natural em você ou você se faz assim a si mesma para não se deprimir, ou seja, fala tudo para não ficar muda?
Elis Regina – Sou um ser do tipo sanguíneo que oscila muito. Tenho momentos de extrema alegria e momentos de profunda depressão. Não obedeço a uma agenda: hoje vou sentir isso, amanhã vou sentir aquilo. Reajo aos acontecimentos à medida em que o ambiente reage sobre mim. Mas como sou hipersensível, as coisas têm às vezes um valor que a maioria das pessoas acha ridículo. Mas eu sou assim mesmo. Por exemplo, às vezes fico furiosa com uma pessoa cujo problema talvez, você contornasse com um simples puxão de orelha. Ao mesmo tempo, tomei agora consciência de que essa não é uma atitude lógica e estou procurando me reestruturar.
Clarice Lispector – Que é que você tem feito de positivo em matéria de auto-reestruturação?
Elis Regina – Estou fazendo um tratamento genial que é, dizem, moderníssimo – reflexologia.
Clarice Lispector – Em que consiste?
Elis Regina – Parte das descobertas dos reflexos condicionados de Pavlov. No meu caso, está sendo atacada de início a minha taquipsiquia, isto é, minha tendência de pensar mais rápido do que eu mesma posso agir. Portanto, quando as coisas chegam a acontecer, já tomaram proporções monstruosas, não na realidade, mas dentro de minha cuca.
Clarice Lispector – E como é que o médico intervém nesse sistema?
Elis Regina – Primeiro, mostrou que tenho essa tendência e provou que isso era verdade. E está agora me dando condições psíquicas para que eu saiba exatamente o momento em que a aranha da taquipsiquia começa a se movimentar, e como devo jogá-la para fora de casa.
Clarice Lispector – Você foi considerada má colega. Pelo que tenho lido a seu respeito, me parecera pelo contrário: boa colega. O que é ser má colega?
Elis Regina – Bom, toda a minha vida disseram que fui má colega. Mas, enquanto eu dei quarenta no Ibope tive um programa de televisão na mão e as pessoas puderam se sobressair. Utilizaram-se de todas as vantagens que a artista Elis Regina poderia lhes dar no momento. Nenhum artista dos que hoje me acusam de má colega deixou de comparecer e usufruir de meu programa e meu sucesso. Então, eu não sei mais quem foi e quem é má colega. Má colega, na minha opinião, é aquela que esconde seus parceiros. Eu, muito pelo contrário, nunca agi assim e fui até criticadíssima porque no meu programa acontecia de tudo, sem que tenha havido uma estrutura prévia. Se eu fosse a déspota que dizem, no meu programa só daria eu. Mas acontece o oposto: quanto mais pessoas estiverem agregadas ao processo, melhor para mim. Seria mais cômodo ter minha gangue, e não trabalhar como trabalhei tanto tempo com gente diferente e de sucesso. Que os meus colegas digam que sou uma pessoa geniosa, dou a mão à palmatória. Mas mau caráter é quem cospe no prato em que comeu.
Clarice Lispector – Se você não pisasse no palco, o que faria de sua vida?
Elis Regina – Não sei. Realmente não tenho a menor ideia.
Clarice Lispector – Pense agora então.
Elis Regina – É que o palco está tão ligado à minha maneira de ser, à minha evolução, aos meus traumas, que eu acho que me separar de um palco é a mesma coisa que castrar um garanhão: ele deixa de ter razão de existir.
Clarice Lispector – A vida tem sido boa para você?
Elis Regina – Muito boa. Acho até que eu tenho mais do que mereço ter. E não estou fazendo demagogia barata: acho mesmo isso.
Clarice Lispector – Você já esteve apaixonada? Se esteve, suas interpretações mudaram nesse período?
Elis Regina – A pessoa apaixonada se comporta completamente diferente em relação a tudo, principalmente sendo sensível como eu sou.
Clarice Lispector – É bom estar apaixonada?
Elis Regina – Bem melhor do que não sentir nada!
Clarice Lispector – Você mudou de estilo de cantar. Por exemplo, não usa tanto os braços. Por que a mudança? Para sair da rotina ou porque você ficou mais moderna?
Elis Regina – A gente vai vivendo – e eu sou uma pessoa que vive intensamente, tirando o máximo de tudo – a gente vai vivendo e modifica-se a cada dia. Juntando-se a isso a pouca idade e maturidade incompleta no meu início de carreira, é absolutamente normal, penso eu, que eu esteja me modificando sempre. Acho que nenhum ser tem o direito de se cristalizar nem os outros têm o direito de exigir isso dele.
Clarice Lispector – Como é que você tem recebido os comentários negativos sobre Elis Regina?
Elis Regina – Procuro antes saber porque a pessoa falou isso. Depois, analiso se existe algum envolvimento pessoal na crítica. Faço a soma, tiro a prova dos nove, e passo a limpo, se for o caso.
Clarice Lispector – Quando você está em casa, com o tempo disponível, e põe um disco na vitrola, quem canta nesse disco?
Elis Regina – Frank Sinatra – respondeu prontamente, sem hesitação.
Clarice Lispector – Dizem alguns que o seu show é o Mièle. Que é que você acha?
Elis Regina – Este show é um conjunto de coisas. Talvez, mais que Mièle, o show seja Bôscoli. Isso no que diz respeito à parte dos bastidores. Agora, em palco, Mièle é o maior artista que já vi trabalhar em cena, além de que tudo o que ele faz é absolutamente natural: ele é assim. Sinto-me profundamente feliz de ter sabido escolher bem, mais uma vez, o meu parceiro de trabalho. Não se deve esquecer também, nas críticas, que eu sou a íntima conhecida de todo o mundo e que o Mièle é que é o novo no espetáculo. Sei que não sou nenhuma novidade. Mas estou feliz que a novidade seja exatamente Mièle, que é meu amigo, meu produtor, meu confidente e uma das poucas pessoas que me restituíram no pouco que lhes dei.
Estava mais ou menos encerrada a entrevista, se bem que esta pudesse se completar muito mais. Foi o que aconteceu quando Elis me deu carona no seu carro e conversou comigo. Infelizmente não posso transmitir a conversa, que me mostrou uma Elis Regina responsável, misteriosa nos seus sentimentos, delicada quanto aos sentimentos dos outros. Uma Elis Regina, enfim, que tem mais problemas do que o de ser acusada de mau coleguismo. Mostrou-me uma Elis Regina que não quer ferir ninguém. Se há outras Elis, no momento, não me foi dado ver. A que eu conheci tem uma espontaneidade e uma simpatia raras.
ELIS REGINA – Tornou-se conhecida nacionalmente em 1965, ao sagrar-se vencedora do I Festival de Música Popular Brasileira da TV Excelsior, defendendo a música Arrastão, de Edu Lobo e Vinícius de Moraes. Ao lado de Jair Rodrigues apresentou um dos programas musicais mais importantes da televisão brasileira: O Fino da Bossa, estreado em 1965 na TV Record. Lançou inúmeros compositores como Milton Nascimento, Ivan Lins, Zé Rodrix, Belchior, Aldir Blanc e João Bosco. Entrevistas realizadas por Clarice Lispector, entre maio de 1968 e outubro de 1969.
– Clarice Lispector, em “Clarice Lispector entrevistas”. {Elis Regina}. Rio de Janeiro: Rocco, 2007.
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Edição: Alek Brandão
Fonte: Revista Prosa Verso e Arte (texto e imagem).
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