Filme 'Você não estava aqui' mostra a realidade sombria do livre mercado


Longa de Ken Loach está em cartaz no Cine Líbero Luxardo até quarta-feira

Quando terminou a filmagem de "Eu, Daniel Blake" (2016), o cineasta Ken Loach, de 83 anos, acreditava que seria seu último trabalho. Seria o encerramento de uma rigorosa carreira, marcada essencialmente pela crítica social e simpatia pelos desvalidos. Mas, durante a pesquisa realizada para esse longa, ele e seu fiel roteirista Paul Laverty enveredaram por um ramo obscuro da sociedade: o da selva do livre mercado, em que as pessoas ganham por trabalho executado, geralmente como motoristas de aplicativos ou entregadores de mercadorias.
Nascia ali a ideia para "Você Não Estava Aqui", filme que causou comoção no Festival de Cannes e que está em cartaz no Cine Líbero Luxardo, com exibições nesta terça-feira, 3, e quarta-feira, 4/03, às 20h. O longa acompanha Abbie e Ricky, casal apaixonado e esperançoso de que o trabalho independente possa resolver seus problemas financeiros - após a crise de 2008, eles sofrem a ameaça de perder a casa, que está hipotecada. Ricky, então, compra uma pequena van para trabalhar como motorista de entregas, crente que vai faturar um bom dinheiro.
O que ele não imagina é entrar em um sistema que exige longas jornadas, quase sem descanso (é obrigado a urinar em uma garrafa) e sem nenhuma garantia social. A rotina é tão alucinante que só consegue falar com os filhos por telefone. "Se ficar doente ou tiver um problema familiar, não recebe nada", comenta Loach, em entrevista por telefone ao jornal O Estado de S. Paulo. "É um novo tipo de exploração, a chamada 'gig economy', que nos incentivou a rodar 'Você Não Estava Aqui'".
O Dicionário Cambridge diz que "gig economy é uma forma de trabalho baseada em pessoas que têm empregos temporários ou fazem atividades de trabalho freelancer, pagas separadamente, em vez de trabalhar para um empregador fixo". Ou seja, o vilão não é mais uma instituição ou um governo, mas os algoritmos que aceleram o trabalho dos entregadores a fim de oferecer conforto e rapidez a quem paga pelo serviço.
O diretor fala sobre o que o levou a colocar a "gig economy" como tema central do filme. Quando filmávamos Eu, Daniel Blake, percebemos, Paul e eu, que havia uma extensão da forma de atividade dos trabalhadores pobres, ou seja, com a degradação social, muitos foram obrigados a trocar a segurança de um emprego com horário regular, férias, seguro doença e outras vantagens por uma atividade sem nenhuma segurança e tampouco garantia de estabilidade financeira. Isso provocava um estresse que essas pessoas levavam para casa, agravando ainda mais a situação porque, em público, se mantém uma postura; uma vez em casa, a pessoa entra em colapso total, não é flexível com a família".

Ainda segundo ele, não se trata de um problema novo para a sociedade, mas sim um antigo, que ganha nova feição por ser provocado pela tecnologia moderna. "A exploração ganhou novos meios no momento em que a tecnologia permitiu, por meio de aparelhos celulares, que o comprador de algum produto saiba onde exatamente está o carro do entregador e quando exatamente sua compra vai chegar. Assim, o entregador tem de correr sérios riscos para cumprir com o prometido. A exploração é antiga, apenas a tecnologia é nova".

Ele revela, ainda, que o roteirista Paul Laverty fez a maior parte da pesquisa. Não foi fácil, pois, por temor, os motoristas não queriam falar para não arriscar seus empregos. "Também não foi fácil visitar os depósitos, mas tivemos a sorte de conhecer um homem, que era gerente de um depósito e que nos deu conselhos valiosos sobre como construir o nosso depósito. Conseguimos contratar ex-motoristas, que aparecem no filme e sabiam exatamente como funcionava a rotina estressante e as pressões que seus colegas ainda passam", revelou.

"Descobrimos pessoas vivendo situações muito complicadas. É surpreendente a quantidade de horas que esses trabalhadores precisam empregar para garantir uma vida decente, ainda que sob muita insegurança. Pense bem, o risco é inteiramente deles porque trabalham por conta própria. Qualquer um pode perder muito dinheiro rapidamente", completa.

Para ele, o cinema, de alguma forma, pode ajudar a mudar os problemas. "Sou um contador de histórias muito próximas das pessoas. Acredito que o cinema tem a força de dar destaque a determinados problemas e provocar questionamentos. Diferente do que normalmente acontece em Hollywood - lá, vemos belas pessoas, que viajam, frequentam restaurantes sofisticados, mas não sabemos de onde tiram dinheiro para isso (risos). É um mundo de sonhos, mas prefiro longas que compartilham responsabilidades com o público".




Fonte: O Liberal/Cinema (Texto e Foto)

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