Cantoras paraenses falam sobre desafios do protagonismo feminino na música
A veterana Lucinnha Bastos e a estreante do rap, Nic Dias contam as experiências no cenário musical
Com 46 anos de carreira, Lucinnha Bastos despertou para a música aos sete anos cantando em festivais e na extinta TV Tupi de São Paulo, buscou o sucesso no eixo Rio-São Paulo, mas rejeitou contratos porque queria cantar música paraense e encontrou reconhecimento na volta para casa, em 1992.
"Eu não queria cantar os modismos, não eram a minha verdade, a minha essência", conta ela, que se tornou uma das maiores referências da música regional. Percorrendo um caminho diferente, a rapper Nic Dias, de 20 anos, teve um impulso na carreira com os festivais Se Rasgum e Psica, em 2019. Com letras marcantes em defesa do direito de mulheres negras, da comunidade negra e da periferia, ela se prepara para gravar o primeiro álbum solo este ano.
Lucinnha Bastos era conhecida como a "cantora mirim do Pará", que apresentava repertório adulto em festivais e programas da TV Tupi. Despertou para a música no ambiente da banda Sayonara, que pertence ao pai dela, Luciano Bastos. No período de nove anos em que morou no Rio de Janeiro e São Paulo, tentando carreira nacional, resistiu a gravar outros estilos: "Na época em que estourou a Roberta Miranda, produtores da Som Livre e BMG Ariola me procuraram para gravar sertanejo, mas não dava, não tinha a ver comigo, não era a minha essência".
Lucinnha Bastos é uma das cantoras mais conhecidas da Música Popular Paraense (Divulgação)
A história se repetiu com o sucesso do Rei da Lambada, Beto Barbosa. A experiência anterior, vivida ainda no Norte e Nordeste, a impelia de aderir aos projetos da moda musical, pois, ao lançar um disco de brega com músicas do Alípio Martins, foi impedida de cantar outras músicas nos shows. "Eu queria misturar, cantar uma lambada, mas também carimbó, Paulo André e Ruy Barata e outros", recorda.
Mas no Sudeste pesava também a avaliação de que a música paraense era "bairrista". "Tive uma briga com o presidente de uma gravadora. (Disse:) 'Quer saber, não vou ficar aqui dando murro em ponta de faca com quem não valoriza a nossa cultura'. Resolvi voltar pra minha terra e foi a melhor coisa que fiz na vida". E mesmo a volta aos palcos de Belém não foi simples, de início, o público "torcia a cara" para as músicas regionais, mas resistiu com o repertório do sonhos. "Foram anos de resistência".
Em 1997, lançou o disco de repertório regional, 'Canta Amazônia I', pela Atração, de São Paulo, "foi quando comecei a ser conhecida como Lucinnha e não a 'filha do Luciano' ou a 'menina do Pará' ou a 'menina que cantava com Bily Blanco, Sebastião Tapajós e Gilson Peranzetta', no Rio", conta. Hoje, ela contabiliza 4 vinis, 5 CDs e 1 DVD lançados - incluindo i recente "Imaginação", de 2019 -, além de 3 CDs e 2 DVDs pelo projeto Trilogia, junto com Nilson Chaves e Marhco Monteiro.
A voz do rap
Aos 20 anos, Nic Dias canta a realidade cotidiana da periferia de Belém, especialmente do distrito de Icoaraci, onde vive e "toca" o projeto social "Olhar Invisível", fundado por ela. Ela mergulhou no rap em 2018, motivada pela "necessidade" de compor sobre o que é ser uma "mulher negra numa sociedade racista e sexista", a importância do protagonismo de mulheres negras no hip hop e também da denúncia da violência sofrida pela comunidade negra no geral.
Nic Dias é uma das revelações do rap paraense (Washington Oliveira)
Mais do que isso, as canções dela trazem a lírica nortista periférica misturada ao flow do trap ao boombap. "A minha trajetória tá sendo um verdadeiro desafio pra mim, uma mulher negra de 20 anos da periferia, que se sente de certa forma deslocada dentro do cenário musical, mas que cada vez mais firma seu pé e mostra que esse também é o meu lugar", conta a jovem que viu as portas se abrirem após conquistar o público nos festivais. "O Se Rasgum foi um divisor de águas na minha carreira, um festival incrível, assim como o Festival Psica".
Em abril do ano passado, ela lançou o primeiro single, "Degrau", sobre a violência e o descaso que a mulher negra enfrenta na periferia, e dois meses depois, lançou "Guilhotina", com roupagem completamente trap seguindo uma estética gangsta rap e exaltando a presença da mulher negra na sociedade e no rap. Ambos as músicas tiveram a produção do beatmaker Navi Beatz. "Gravei mais um clipe chamado 'Brio' com o MC Super Shock de Macapá e um documentário sobre o 'Olhar Invisível' para o canal Futura (em 2018)". O projeto realiza doações e atividades educativas com pessoas de todas as idades de comunidades carentes.
A música de Nic Dias é um diário de bordo: ela fala sobre sonhos e a realidade subversiva em que milhões de jovens negros estão inseridos no Brasil, também sobre violência doméstica, violência que sofreu e que viu a própria mãe sofrer durante a infância e que retrata em versos musicais.
"Eu costumo dizer que a arte é livre pra ser o que quiser e da forma como quiser. A minha arte fala muito sobre medos, dores, vivências, mas também sobre meus desejos, sonhos, expectativas. Então eu posso falar sobre violência urbana mas também posso falar sobre amor, porque tudo isso faz parte de mim e do que eu vivo. O rap também".
Fonte: O Liberal/Música (Texto e Foto)
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