Uma crônica muito interessante - Por Sérgio Buarque



Natal, infância e comilança

O Natal era uma festa tripla, pois, além da data religiosa, comemorávamos no dia 24 o aniversário do velho Aristeu e de meu irmão Sílvio. Servia-se um peru cevado no quintal e assado no forno da padaria do Chico Homem pelo padeiro Zé Cacimba, meu colega de brincadeiras na Praça Moura. Eu tinha a grande responsabilidade de levar, o que era fácil, mas era um exercício de equilibrista trazer a assadeira de volta, andando meio quilômetro pela rua de terra, a passos lentos, para não deixar o bicho escorregar da travessa. Meu pai só gostava do peito, mas o repartia generosamente com todos, porém uma parte era só dele: o sobre, como abreviava o sobrecu, definido no dicionário como uropígio. Depois da ceia, íamos assistir à Missa do Galo, e este era o único dia do ano em que eu dormia depois da meia-noite.

Éramos católicos, mas não do tipo fervorosos. Não lembro de ir religiosamente à missa, embora tenha feito a 1.ª comunhão aos nove anos. O fotógrafo da cidade, Wiliam Magalhães, montou um cenário na lateral da igreja, desenhado por Zé Maria Glins, em que a meninada que acabara de receber a Eucaristia aparecia recebendo a hóstia das mãos de Nosso Senhor, mas eu apareci olhando pra máquina. Para a crisma, mamãe escolheu como padrinho o prefeito Miguel Aissar. Apesar de ser muito amigo de seu filho Zé Francisco, nunca fui com a cara dele e jamais lhe pedi a bênção.

Papai era um glutão, e puxei dele o gosto pela mesa farta e a despensa e a geladeira cheias. Minha mãe tinha na cozinha uma particularidade que nunca entendi: cozinhava divinamente pratos que não comia, como o pato no tucupi. Nunca fez uma feijoada preta, mas o feijão nordestino com cubos de charque, couve e jerimum era diário; nem fazia maniçoba, que eu repugnava e só provaria aos 18 anos. Mas era perita num rosbife, bifes na brasa ou fritos, preparados em duas frigideiras, pois numa iam cebola, tomate, pimentão verde e coentro, depois juntados com a carne frita. Fazia também um sururu no leite de coco delicioso, que minha avó Jovenilha, numa operação postal incompreensível, mandava desidratado, pelo correio, da longínqua Maceió.

Para mim, a peça de resistência era uma iguaria a que mamãe deu sua contribuição, camarão seco no leite de coco, com coentro, batata inglesa e ovo em neve batido no garfo, ingrediente que ela introduziu – para toda a vida meu prato predileto. De doces lembro do de banana, avermelhado, que, depois de pronto, repousava sob olhares impacientes de desejo no bufê da sala, e só podíamos comer quando esfriasse, e de um pudim que acho que era de leite. Não se comparavam, no entanto, à delícia das terrinas enormes de canjica de milho verde, salpicadas de canela, que em São Paulo conheci como curau. À mesa, para o café da manhã e as merendas, não faltava manteiga Real, de Varginha, MG, que era muito vendida no Pará – mas, em São Paulo, onde cheguei em 1972, só apareceu por volta de 2016. A lata de 1 kg esvaziava-se em dias, assim como outra delícia onipresente, o queijo-cuia, como chamávamos o queijo do reino de origem holandesa embalado numa lata redonda de alumínio. A tapioca era a casada, duas emendadas por uma camada de coco ralado.

A mesa exigia modos. Não se podia sentar sem camisa nem falar de boca cheia ou dizer qualquer coisa repugnante. Os pratos eram servidos em vasilhas, terrinas, jamais em panelas – e sempre dois. Mamãe tinha, no entanto, o hábito de comer com a mão, formando com os dedos o montinho chamado capitão.

O Natal era antecedido pelo arraial de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. A Praça da Matriz ficava rodeada de barraquinhas de comidas e bebidas, garapa, e de brinquedos, barquinha, carrossel, pescaria, um jogo de argolas atiradas em garrafas (se a argola entrasse no gargalo, o jogador ganhava a garrafa, de cerveja ou refrigerante) e até mesmo um jogo a dinheiro, semelhante ao de dados, com escudos de clubes de futebol, onde os menores de idade podiam apostar. Havia atrações circenses, como a Monga, ventríloquos e palhaços. A Barraca da Santa, armada em torno do coreto, cada dia era assumida por alguma instituição ou personalidade. O ponto alto eram os leilões de prendas doadas à santa, de uma simples orquídea a um boi. Gente endinheirada, como os Cunhas Maia, dava lances muito mais altos que o valor do bem, e o oferecia a outra pessoa.

Já adolescente, o arraial era também uma oportunidade de encontrar a namorada, ou de achar uma – e ficávamos andando na calçada, paquerando. Quem tinha namorada escapava para as ruas laterais, aproveitando a rara possibilidade de encontrá-la à noite, longe de olhares inoportunos. Os casais se amontoavam na parede do DER ou sob os benjaminzeiros da Praça Magalhães Barata.

Capanema, teu nome é lembrança...


Edição: Maikon Douglas
Fonte: Amigos de Capanema
Texto: Sergio Buarque de Gusmão - Jornalista Capanemense que reside em São Paulo-SP
Imagem: Divulgação

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