A pequena tia Elza



Crônica da Atualidade - Por Abílio Pacheco

Hoje é dia dos professores e eu vou me reportar à longínqua e presente Coroatá, onde tive apenas dois professores (exatamente dois). Um deles dava-me aulas num antigo chiqueiro de porcos e só me recordo das palmatórias e do nome que hoje uso para lembrar dele: Juvêncio. A outra era a tia Elza, a pequena tia Elza.
Ela era uma professora alfabetizadora. Destas muitas que existem pelo Brasil desbravando matagais, abrindo veredas, tangendo pedras e seguindo em caminhos hostis que são as cabecinhas tolas e espertas de nossas crianças. Eu sei que ensinar o gênero textual (essa coisa aí bonita da Linguística) seja algo deveras útil para o aluno no seio da via social. Mas, dá cá esta palha, ensinar a juntar consoantes e vogais para fazer sílabas; rabisco sonoro com rabisco sonoro igual a outro rabisco sonoro – ou debuxo ruidoso… Isso, meus caros leitores e minhas caras leitoras… Olhe bem, quem vai passando pela estrada asfaltada e plana parece até esquecer o quanto teve de gente abrindo picada, amansando pedras e orientando asfaltos. Cada pedágio que pagamos pelas Dutras da vida deveriam reservar bons quinhões para quem foi de fazer juntar o “bê” com o “a”.
Se bem vou conseguir não sei, mas a homenagem a pequena tia Elza pode ser estendida a tantas outras professorinhas esquecidas neste pindorama que hoje vai degringolando ladeira abaixo, mas que nenhuma culpa elas têm. Houve um tempo em que o país se construia gigante por ação política como um prédio de muitos andares. Cada IDH, belo como uma janela barroca. Cada fator social como uma voluta no alto de uma coluna. Nem vou falar dos pavimentos… Mas, sustentando este “belo impávido colosso”, está uma coisa que ninguém vê: o alicerce. Nem falo do alicerce de hoje, cuja fachada só veremos daqui a pelo menos uma década. Mas sim das professorinhas primárias como a tia Elza de cerca de 10, 20, 30 anos atrás.
Há mais de 30 anos depois – afirmo por conta e risco – , as professoras primárias ganhavam menos um salário mínimo. Não existia FNDE, não recebiam em dia, tinham malmente o curso ginasial de Normalista (muitas nem isto). Curso superior de qualquer coisa, noções de linguística para alfabetização, saber o que era dislalia ou dislexia, nem sonhando. Parâmetros Curriculares, quê? Livros didáticos ou mesmo de história… a tia Elza usava era a cartilha do MOBRAL para me ensinar. Imagino meu avô dizendo que a cartilha era dela, da professora. Só não faltavam paciência e boa vontade na sua casa amarela de pé direito baixo, calha de zinco num dos lados do telhado e uma ou outra telha transparente. Ô sôdade boa de sua casinha de porta e janela (ou de janela e garagem) na rua do Sol, pertinho da minha travessa da Mangueira.
Não era uma escola, não. Ela dava aulas em casa mesmo. Nada de reforço ou complemento. Minha escola era a copa de sua cozinha. Sem quadro negro ou campainha. Nada de turma, apenas um ou outro colega. Era quando havia algum menino mais turrão que ela mais se mostrava paciente. Vou contar um desses episódios….
Uma vez deixou-nos, eu e um meio desalmado, com seu filho. O rapaz tinha menos de 25 anos e estava de castigo na copa e cozinha, pois tinha que tomar uns litros de água (para fazer lavagem estomacal). Ela nos recomendou que não bebêssemos das garrafas dele, pois era medido (se a memória não me falha ou não me excede). Meu colega inventou de atazanar para beber da água do secretário de nossa escolinha. Como o filho da professora não deu, meu colega enfiou-lhe o lápis no braço. O lápis desse colega tinha sempre uma ponta longa que ele mesmo fazia a peixeira. Enfiou rápido! Não em 90 graus como se cravasse faca, mas na tangente como se enfiasse injeção. O buraco no braço não bastou; ficou encravado um pedaço do grafite no braço do rapaz. Vendo o mal feito, este meu colega se sentou, cruzou os braços fazendo bico e ficou assim congelado até quando a tia Elza chegou.
O filho da professora muito consciente e ajustado não fez nada. Disse algo coisa que bem pouco me recordo. Se fosse outro, teria rodado a mão no pé de lata do encapetado. Quando a mãe chegou, apenas mostrou o braço e ela entendeu. Chamou-nos, eu e meu colega, para perto; para ver o machucado. Premiu para sair a ponta do lápis, o pedaço de grafite. Fazia isto mais para nos provocar que para extrair o corpo estranho. Com não-sei-que ternura foi explicando o que havíamos feito. E se ele ficar sem o braço, como vai ser? Meu colega olhava empedernido para o vazio escondido atrás do braço ferido. Ela apertava o machucado, falava e falava e eu ia ficando “atulermado” (hoje devem dizer “constrangido”). Quando tirou o corpo estranho do braço do filho e suspendeu o grafite sujo de sangue pinçado entre os dedos, falou daquele objeto como uma coisa muito assombrosa, como algo que poderia causar coisas pavorosas. Palavra não lembro nenhuma, mas a essência e o tom da voz… Talvez tenha passado dias lembrando do incidente sempre ao ver um lápis de ponta mais alongada. Certo é que aquela candura imprimiu em mim melhor resultado que uma palmada bem dada, melhor que as palmatoradas que eu levava no chiqueiro-escola do Sr. Juvêncio.
Depois que saí de Coroatá ainda fui à casa dela uma ou outra vez. Nenhuma vez a revi. Ela sempre estava viajando para São Luís, sempre por causa de uma consulta ou um tratamento. Já faz tempo que faleceu, uns quinze ou vinte anos. Mas ela está cá neste aprendiz de professor. Deve estar comigo (metafisicamente – matéria mística) quando preciso ser mais parcimonioso com “minhas crianças”, quando o que preciso ensinar não é a lição, não é o conteúdo, mas algo de proveitoso para vida, quando (como ouvi um professor de português no CEFETPA dizer aos seus alunos) “é preciso forjar nos alunos, gente”, ou, sendo menos grosseiro, quando é necessário ser mais educador que professor e conduzir os alunos para um bom exercício de humanidade. Parafraseando o que Freud disse sobre o trabalho do psicoterapeuta: todas as teorias são importantes, mas há momentos que é preciso deixar que seja apenas um ser humano conversando com outro ser humano.


Abilio Pacheco é Professor Universitário de Literatura na Universidade Federal do Pará (campus de Bragança). Licenciado em Letras pela UFPA (de Marabá), Especialista em Linguística Textual (UFPA), Mestre em Estudos Literários (UFPA – Campus do Guamá-Belém). Fez intercâmbio em Berlin. Doutorado em Andamento. Como escritor publicou o romance Em Despropósito, e outros 5 livros de prosa e verso. Organizador de mais de 50 antologias. Alguns prêmios literários, dentre eles o 1º Lugar no concurso literário nacional Irene Santini, organizado pela casa do poeta brasileiro de Praia Grande, quando tinha 17 anos. Também relevante a classificação de seu livro de poemas Canto Peregrino a Jerusalém Celeste entre os 7 melhores de língua portuguesa no Prêmio Literário Glória de Santana. É também revisor e editor. Aprendiz de artista visual, tendo participado de uma exposição coletiva na Galeria de Artes Vitória Barros.


Imagens: Divulgação / Site: vozdopara.com.br

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