O Lima Barreto que nos olha por Beatriz Resende
Noite de Natal de 1919. O escritor Lima Barreto (1881 – 1922) é levado, delirante, ao Hospício Nacional de Alienados, o antigo Hospício Pedro II que mudara de nome com a República. Recebe um uniforme, na verdade um pijama, é identificado e fotografado.
Por uns bons 20 anos procurei por essa foto, mesmo não sabendo se ela realmente existia. Nunca percebi bem o porquê, mas, como parte de minhas pesquisas sobre o autor, parecia ser preciso ver o registro oficial dessa entrada no mundo da loucura, descrita por ele mesmo no grande momento de sua obra que é o Diário do hospício. Talvez porque nunca me recuperara completamente da emoção experimentada ao ler, na Biblioteca Nacional, escrito a lápis, no verso das folhas já usadas que conseguira da direção do hospício, o relato dos três meses que o autor passou entre os loucos, desvalidos ou criminosos recolhidos ao edifício que mais se assemelhava a um palácio, na praia da Saudade, antigo nome da praia Vermelha, naquele tempo em que o prédio ficava bem em frente ao mar. As referências feitas ao recolhimento em A vida de Lima Barreto,1 preciosa biografia de Francisco de Assis Barbosa, não se mostravam suficientes. Ainda faltavam peças.
Em 2004, depois de acabar o trabalho de organização e comentário do conjunto de crônicas do autor, enquanto a editora preparava os dois volumes de Toda crônica,2 tentei mais uma vez encontrar o livro de registros do hospício no Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro, no campus da praia Vermelha. Deve fazer algum sentido que o prédio do século XIX, construído para ser o Hospício Pedro II, tenha passado a abrigar em meados do século XX a reitoria da Universidade do Brasil e depois parte da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituições totais?
Ainda não seria daquela vez que encontraria a prova material do que tinha sido relatado no diário, que me defrontaria com o registro da época, com documentos que se pretendiam, por pertencerem ao mundo da ciência, objetivos. Os livros tinham, ao que parece, saído em viagem. Pouco depois, no entanto, uma servidora da biblioteca do Instituto de Psiquiatria, para onde o material tinha sido levado, entrou em contato comigo dizendo que encontrara o que eu procurava. Peças da memória da Psiquiatria, como máquina de eletrochoques, negativos em vidro e os livros de registro começavam a se organizar, ainda bastante precariamente naquele ano, na biblioteca.
Fui correndo, ansiosa, como que atendendo a algum tipo e chamado. E lá estavam, o registro e a foto, que nunca tinham aparecido diante dos olhos de alguém fora da instituição. Por alguma razão, nem mesmo o biógrafo tivera acesso à imagem em suas vastas pesquisas. Em seguida, chamei um fotógrafo, que não só registrou a imagem do interno como, inoculado também pelo que de mágico parecia haver naqueles livros mantidos como secretos, reproduziu outras páginas – incluindo a anamnese feita pelo médico e outros documentos de internação, além da imagem de outros internos, fotos que seriam também importantes para compreendermos o processo de recolhimento.
Seis anos depois, em setembro de 2010, a pesquisadora Daniela Birman voltou ao mesmo espaço da instituição e conseguiu encontrar o livro de registro anterior, de 1914, com a documentação da primeira entrada do escritor no Hospício Nacional e a foto dele aos 33 anos.
Completava-se, assim, a parca iconografia de um dos maiores escritores da literatura brasileira.
NAS OBRAS COMPLETAS, A CONSTRUÇÃO DE UM AUTOR
O reconhecimento em vida da importância do escritor foi, como se sabe, escasso e polêmico. Triste fim de Policarpo Quaresma foi publicado em folhetins do Jornal do Commercio entre agosto e outubro de 1911. Em livro só apareceu em 1916, editado pela Revista dos Tribunais, graças à boa vontade e Félix Pacheco e pago pelo próprio autor: “Tomei dinheiro aqui e dali, inclusive do Santos (Noronha Santos), que me emprestou 300 mil-réis, e o Benedito imprimiu-o”.3 Parte do dinheiro fora obtida em empréstimos de agiotas do Ministério da Guerra, onde trabalhava.
Os contos iam sendo publicados em revistas diversas; as crônicas, responsáveis pelo reconhecimento que recebe sobretudo como jornalista, enviadas para jornais diversos. A colaboração no A.B.C., fixa entre 1918 e 1919, foi interrompida depois de o semanário publicar um artigo ofensivo aos negros. As crônicas de mais forte teor político frequentemente eram escritas a convite de editores de publicações menores e efêmeras, como Astrojildo Pereira. Nos últimos anos de vida, manteve uma intensa colaboração para a Careta.
Afonso Henriques de Lima Barreto só será mesmo incorporado à chamada história da literatura brasileira, ao elenco de escritores brasileiros tidos como dignos de serem estudados e, assim, ao cânone da literatura brasileira, a partir da publicação, em 1956, pela editora Brasiliense, das Obras completas, organizadas por Francisco de Assis Barbosa com a colaboração de Antônio Houaiss e M. Cavalcanti Proença. Em 1952, Assis Barbosa publicara a primeira edição da biografia, realizada após vários anos de pesquisa.
É importante refazer esse percurso por sua relevância, já naquela época, como método de estudo, como abordagem de uma obra na perspectiva multidisciplinar, hoje reconhecida como fundamental. Ao biógrafo de Lima, historiador de origem, juntaram-se filólogos, críticos literários e jornalistas na leitura e preparação dos textos. O conjunto do que, naquele momento, foi considerado “obras completas” – na verdade, pouco se pôde acrescentar a ele entre descobertas e resgates de textos de lá para cá – abarcava romances (inclusive o inacabadoCemitério dos vivos), contos, crônicas (algumas delas sob a forma de resenhas de livros) e editoriais, mas também escritos de origem diversa, como o Diário do hospício, transcrito do original manuscrito, e o Diário íntimo, compilado a partir de cadernetas variadas. Os manuscritos foram encontrados na casa do escritor alguns anos após sua morte, sob a guarda amorosa da irmã.
Vale notar, a propósito, a absoluta convicção de Lima Barreto sobre a importância de sua própria obra. Organizara pessoalmente todo o material, incluindo a listagem dos livros de sua biblioteca – nada acanhada para uma pequena casa de subúrbio, com títulos em inglês e francês – e os amarrados de recortes a que chamou “Retalhos” – reunindo material tirado de revistas e jornais, inclusive os que chegavam a Todos os Santos vindos do exterior.
No processo de legitimação do autor de que aqui tratamos, três aspectos merecem destaque e podem ser ativados como formas desejáveis de pesquisa no campo literário. Primeiro, a noção de arquivo, hoje tão importante para os estudos literários. É do arquivo do escritor que parte a pesquisa inicial e se torna possível a edição dos volumes dasObras completas. Por arquivo de escritor, entendemos hoje, além dos textos literários em si, elementos de uma rede textual mais ampla, registros de contextos discursivos que envolvem produção e recepção, acervo privado e documentos de circulação pública. Fazem parte ainda do acervo fotografias e, em certos casos, objetos e pertences diversos.
Em seguida, o cruzamento de saberes e a troca de metodologias disciplinares que resultaram no deslocamento de um historiador de seu campo original e possibilitaram seu encontro com outros especialistas e intelectuais de atuação profissional diversa todos mobilizados em torno de um mesmo objetivo, a produção de um autor, aqui resultado desses múltiplos olhares que se voltaram para os textos.
Finalmente, a concepção tão contemporânea da não hierarquização de gêneros e práticas literárias, um conceito aberto para além dos limites que, durante tantos anos, reduziram o conceito de literatura. Apresentava-se ao público, assim, uma obra em que, como afirma Jacques Rancière, “tudo fala”, abolindo-se hierarquias da ordem representativa.
“Não existem temas nobres e temas vulgares, muito menos episódios narrativos importantes e episódios descritivos acessórios”, escreve Rancière. “Porque não há coisa alguma que não carregue em si a potência da linguagem. Tudo está em pé de igualdade, tudo é igualmente importante, igualmente significativo.”4
Essa forma de pensar a arte, que assume a destruição de categorias, fronteiras e hierarquias, constitui um regime estético definido pelo conjunto de relações entre ver, fazer e dizer. É essa transformação que permite combinações inéditas, a partir da ruptura de um certo número de fronteiras como as que separam as artes entre si, as formas de arte, as formas de vida, a arte pura da arte aplicada, a arte da não arte, o narrativo do descritivo e do simbólico. Ao crítico literário, ao pesquisador, cabe, ao que me parece, sobretudo um trabalho de cartografia que atravessa todas essas formas de manifestação, formando um sistema de possíveis.
Para pesquisadores de gerações posteriores, dentre os quais se destacam Nicolau Sevcenko e Antonio Arnoni Prado, ficou logo claro que era impossível conhecer realmente o escritor, perceber sua importância no quadro da literatura brasileira e na formação mesma da República que vivemos, se não relacionássemos sua obra de ficção a seus outros escritos como as crônicas, diários, registros íntimos.
Essa noção de arquivo, para a qual as pesquisas de Georges Didi-Huberman têm sido contribuição provocadora, se impõe, portanto, como proposta de pesquisa evocando novas tarefas, inclusive as de recuperação, ordenação e classificação nada fáceis entre nós, no Brasil de curta memória. Trata-se de “uma história que já podemos dizerfantasmal”, conforme escreve Didi-Huberman sobre Aby Warburg, “no sentido de que nela o arquivo é considerado o vestígio material do rumor dos mortos”.5
UMA TRAJETÓRIA PRECARIAMENTE DOCUMENTADA
Ao menos até recentemente, antes da difusão massiva da fotografia digital e de sua circulação nas redes sociais, a situação familiar e econômica de um escritor poderia ser avaliada a partir do seu álbum de retratos. As fotobiografias são, por isso, quase sempre reveladoras: nelas temos o autor criança, no colégio, ao se formar, casando-se, recebendo prêmios. Cerimônias e diversos rituais burgueses revelam origem e formação do escritor, e são mais frequentes quando se referem àqueles que foram destinados a encontrar, sem maiores dificuldades, a fama. A falta desse tipo de fotos pode evidenciar pobreza, dificuldades encontradas, escassez de apoios que costumam alavancar uma carreira. No campo da literatura, se quisermos avaliar a posição de um autor no cânone de uma época, nada melhor do que visitar sua fotobiografia.
Órfão de mãe desde muito pequeno, criado por um pai que cedo enlouquece, não há qualquer registro fotográfico da infância ou da juventude de Lima Barreto, personagem que logo deixa a zona sul da cidade onde nascera, muda-se para um bairro que à época era quase um não-lugar, a Ilha do Governador, para finalmente ir viver a maior parte da vida em uma chácara em Todos os Santos, acessível ao centro da cidade unicamente pelos trens da Central.
A mais agradável das fotos que se conhece é identificada por seu biógrafo como sendo de 1909, ano da edição deRecordações do escrivão Isaías Caminha, primeiro romance do autor que vai a público, impresso em Portugal, também à custa do autor. A imagem é de um jovem simpático, sentado com as pernas cruzadas, um meio sorriso no rosto bem escanhoado, vestindo terno completo, com colete, gravata e colarinho engomado. Quase elegante, não fosse um botão do colete que se abre na altura da cintura.
A foto seguinte, publicada em jornal em 1910, o surpreende, atento e devidamente engravatado, como integrante do júri a chamada Primavera de Sangue, conflito entre estudantes e a brigada policial no largo de São Francisco, que resultou na morte de dois jovens assassinados pelo militar conhecido como tenente Wanderley. A mão no queixo e o rosto erguido e desafiante o distinguem dos demais membros do júri. Da participação neste e em outros júris, o escritor falará em diversas de suas crônicas.
A terceira e última das fotos até há pouco conhecidas, reproduzida ad nauseam, saiu na edição comemorativa de um ano de A Estação Teatral, publicação com a qual contribuía com certa regularidade. Em texto veiculado na edição e 15 de julho de 1911, com o título “Alguns reparos”, o autor comenta a edição e a foto: “Dessa forma, não foi possível dar-lhes um medíocre artigo; entretanto, viram meu retrato, não foi? Tirei-o de surpresa, senão teria cortado o cabelo e pedido emprestada uma outra pigmentação para que a cousa saísse mais decente.”6
A essas fotos pouco conhecidas juntam-se algumas caricaturas ou desenhos, inclusive um feito pelo irmão, Carlindo. Das realizadas em vida até as mais recentes, como a de Cássio Loredano para os volumes de Toda crônica, variam a representação do cabelo, mais ou menos crespo, e a do nariz, que vai de afilado a exageradamente largo.
As fotos de Lima Barreto não só são poucas como deixam de existir justamente a partir do momento em que começa a se impor, ainda que a duras penas, como escritor e como jornalista. É como se houvesse uma desistência da imagem, o que vai ser retomado ao lermos as fotos do hospício.
Se as fotos são escassas, as imagens que o escritor constrói de si mesmo são frequentes em crônicas, na correspondência e nos diários, mas também nas obras de ficção.7 Nas muitas identificações que faz de si próprio, são quatro os temas dominantes, sem que haja exatamente uma hierarquia entre eles.
Constante é a discussão de sua identidade de escritor, inclusive a relação conturbada com o meio literário em que vive. Em crônica de 28 de junho de 1911, afirma: “Eu quero ser escritor porque quero e estou disposto a tomar na vida o lugar que colimei. Queimei os meus navios, deixei tudo, por essa coisa de letras.” E, mais adiante, no mesmo texto da Gazeta da Tarde, escreve: “Não quero aqui fazer minha biografia; basta, penso eu, que lhes diga que abandonei todos os caminhos, por esse das letras; e o fiz conscientemente, superiormente, sem nada de mais forte que me desviasse de qualquer outra ambição”.8
Desde o início do diário até o final da vida, em textos diversos, com repercussões em sua ficção, aparecem a cor e as discriminações por racismo de que é vítima. “Eu, mulato ou negro, como queiram, estou condenado a ser sempre tomado por contínuo”, anota ele no Diário íntimo. “Entretanto, não me agasto, minha vida será sempre cheia desse desgosto, e ele far-me-á grande. […] É triste não ser branco.”9
Visto como consequência das dificuldades objetivas da vida e do contraste entre os sonhos e a realidade vivida com sofrimentos diversos, o alcoolismo e seu efeito devastador aparecem desde cedo. No mesmo diário, são os retratos mais dolorosos que de si pinta: “Tinha levado todo o mês a beber, sobretudo parati. Bebedeira sobre bebedeira, declarada ou não. Comendo pouco e dormindo sabe Deus como. Andei porco, imundo. […] Se não deixar de beber cachaça, não tenho vergonha.”10
À bebida se liga, assim, o tema da loucura. Ainda que loucos frequentem sua ficção – e em especial Triste fim de Policarpo Quaresma –, nesses autorretratos a loucura está associada, com razão, ao alcoolismo.
Lima sempre viveu entre loucos, ele mesmo chegou a dizer isso, o que terá certamente inspirado o interesse e a simpatia por esses excluídos. Ainda menino, foi viver no entorno o hospício da ilha do Governador, onde o pai, João Henriques, trabalhou por anos, até enlouquecer. A família se muda, então, para a casa de Todos os Santos, onde o pai, sempre emente, morre dois dias depois de Lima Barreto. É assim que o hospício da praia Vermelha surgirá em sua obra anos antes da primeira internação.
Triste fim de Policarpo Quaresma foi publicado em 1911, três anos antes, portanto, de Lima ter sido recolhido pela primeira vez ao hospício – em agosto de 1914. Toda a narrativa em torno da internação do personagem merece destaque e impressiona a quantos se dedicam ao estudo do autor, por ser dos melhores exemplos de que, por vezes, é a vida que imita a arte.
É minuciosa a descrição do suntuoso prédio construído para abrigar loucos e outros rejeitados pela sociedade. As escadarias, as estátuas que ladeiam a entrada, as colunas, os azulejos do interior, a tristeza dos internos, o terror mesmo que o ambiente infundia nos que entravam no hospício da praia da Saudade, tudo parece familiar ao autor. Mas ainda não era, de fato.
No romance, é tão assustadora aquela casa “meio hospital, meio prisão, com seu alto gradil, suas janelas gradeadas, a se estender por uns centos de metros, em face ao mar imenso e verde”, que poucos tinham coragem de visitar o major. Não parecerá menos assustadora quando o autor lá der entrada, levado à força.
Chegamos, então, na primeira internação no hospício. Em 1914, Lima Barreto já publicara Recordações do escrivão Isaías Caminha, editara a revista Floreal, escrevera contos como “A Nova Califórnia” e “O homem que sabia javanês” e tinha o Vida e morte de M.J. Gonzaga de Sá pronto. No jornal A Voz do Trabalhador, defendera publicamente o anarquismo em crônica na qual criticava duramente a política brasileira, vendo nos anarquistas os que falavam “da humanidade para a humanidade, do gênero humano para o gênero humano”. Mas nem a fama nem o reconhecimento da crítica tinham chegado.
A primeira página do livro de “observações clínicas” traz a identificação o interno junto com a foto. Quando estive na biblioteca do Instituto de Psiquiatria pela primeira vez, espantei-me com a sequência de fotos de alta qualidade, material que ainda merece pesquisa e estudo, que podem render muito. Cheguei a pensar que a decisão de fotografar os que davam entrada à casa fosse iniciativa iluminada de Juliano Moreira, que dirigiu o hospício por tantos anos. Juntaria, assim, técnica e ciência. Pode até ser, mas folheando o livro logo constatei que a fotografia era instrumento de identificação quase indispensável, já que muitos não sabiam quem eram, ou se atribuíam outras identidades. A foto servia, então, para o posterior reconhecimento do interno.
No registro de Lima Barreto, logo depois do nome, a identificação que se segue é a cor, revelando a importância perversa que se atribuía a essa informação. E a cor anotada é “branca”. Fica aí evidenciado o quanto a questão da cor é discursiva, construída, mais do que natural. A cor branca lançada parece ser uma espécie de cerimônia ou deferência do médico que o recebe diante da informação seguinte, profissão: empregado público. A idade vem corrigida, de 34 para 33 anos. A anamnese é longa, relatando o protesto do interno contra o “sequestro” que sofrera, a afirmação de que tinha dois livros publicados, os comentários sobre autores de sua preferência, como Chateaubriand – e o médico anota o comentário irônico do depoente – “católico elegante” e outros, como Balzac e Taine.
Os tremores constatados, na língua e nas extremidades digitais, confirmam o diagnóstico lançado na mesma primeira folha: alcoolismo. Consultando os diversos livros, constata-se uma recorrência entre a identidade e o diagnóstico. Dentre os recolhidos havia crianças, às vezes tão pequenas que precisavam subir num banco para serem fotografadas. São portadoras de “idiotice”. Os velhos apresentam “demência senil”, as mulheres, quase todas, são histéricas, e os que mais frequentemente recebem o diagnóstico de “alcoolismo” são operários.
Pouco antes da internação, abrindo o diário de 1914 em 20 de abril, Lima anota: “Hoje, pus-me a ler velhos números do Mercure de France. Lembro-me bem que os lia antes de escrever o meu primeiro livro. Publiquei-o em 1909. Até hoje nada adiantei. Não tenho editor, não tenho jornais, não tenho nada. O maior desalento me invade. Tenho sinistros pensamentos. Ponho-me a beber; paro. Voltam eles e também um tédio da minha vida doméstica, do meu viver quotidiano, e bebo. Uma bebedeira puxa outra e lá vem a melancolia. Que círculo vicioso! Despeço-me de um por um dos meus sonhos.”11
Olhemos a foto.
Diante do rosto ainda moço e saudável de Lima Barreto, não sentimos pena. Mesmo chocados – o registro fotográfico de uma violência cometida contra alguém choca sempre, mesmo que não seja essa a intenção da foto –, não sentimos comiseração ou dor. É mais provável que partilhemos com o interno de uma raiva surda, impotente. O longo caminho percorrido desde Guaratiba, onde fora recolhido, até a praia Vermelha parece ter curado a bebedeira. Não há traços de delírio, exceto talvez pelos olhos com dificuldade em se abrir completamente, num olhar sampaco. Mesmo assim, Lima olha firme para a câmera, com os lábios duros. Mais que um paciente, pode parecer um revolucionário diante do pelotão incumbido de fuzilá-lo. Lembremos do campo semântico que cerca a palavra “câmera”, como mostra Susan Sontag: máquina que aponta e dispara. Mesmo o traje que lhe fora entregue ao recolherem suas roupas tem, na foto, um ar antes de uniforme do que de pijama de hospital.
Na fotografia, o autor que narrara a loucura de Policarpo Quaresma está mais magro e talvez pareça mesmo mais moço do que na imagem divulgada anos antes pela Estação Teatral. Há beleza nesse mulato claro carregado de mágoa contra todos, de raiva pelos que se encontram diante dele. A escura barba por fazer e os cabelos bastante crespos discordam da cor branca anotada.
Logo em seguida aos dois meses que passa no hospício, a produção de crônicas sofrerá um intervalo expressivo. Pouco será escrito neste ano, e quando volta a escrever para jornais os temas são especialmente cidade e política nacional. Das humilhações sofridas na ocasião só falará no relato da segunda permanência, feito no diário que manteve no hospício. Produz, porém, o conto longo, um de seus melhores, “Como o ‘homem’ chegou”, narrativa alegórica de um jovem que tinha a mania de astronomia, trocando a terra pelo céu, passando a se dedicar ao estudo da matemática, dos cálculos, com tal afinco que só podia ser doido. Os homens de juízo decidem que deve ser levado ao hospício. Esse tipo de narrativa, beirando o fantástico, é incomum na obra de Lima.
Outro raro exemplo é o também excelente “Dentes negros e cabelos azuis”. No conto, para transportar o manso Fernando desde Manaus, onde olhava as estrelas, ao hospício da praia da Saudade, no Rio de Janeiro, os “doutores” servem-se de um carro-forte, masmorra de ferro. Por quatro anos o carro se arrasta com o homem dentro. Como não havia autorização para abrir a prisão ambulante, o aviso dos urubus é ignorado e o exame do paciente só irá acontecer no necrotério.
Na noite de Natal de 1919, Lima Barreto está de volta ao hospício da praia da Saudade. Em 25 de dezembro, os médicos de plantão parecem estar menos disponíveis que os colegas de 1914. O registro é breve e lacônico. A cor é parda e a profissão declarada, “jornalista”. Ser funcionário público não adiantara grande coisa na primeira experiência, quem sabe ser jornalista não lhe garantiria melhor sorte? De todo modo, em 1918, em razão das sucessivas internações por razões psiquiátricas, fora considerado inválido para o serviço público e aposentado. A situação não lhe parecera de todo ruim e, em crônica do início do ano, escreve: “Aposentado como estou, com relações muito tênues com o Estado, sinto-me completamente livre e feliz, podendo falar sem rebuços sobre tudo o que julgar contrário aos interesses do país”.12
Olhemos a fotografia colada ao registro, tendo em mente a epígrafe de Georges Didi-Huberman: “Cada coisa a ver, por mais exposta, por mais neutra de aparência que seja, torna-se inelutável, quando uma perda a suporta – ainda que pelo viés de uma simples associação de ideias, as constrangedoras, ou de um jogo de linguagem – e desse ponto nos olha, nos concerne, nos persegue”.13 Perseguidos e comovidos pela imagem de sofrimento – a imagem nunca é uma realidade simples –, não é difícil imaginar o pote até aqui de mágoas que o interno carregava, e por que vai intitular Marginália ou Bagatelas os livros que deixa organizados reunindo contos e artigos.
O jovem disposto a enfrentar o mundo na internação anterior se fora. É difícil identificar no homem diante do fotógrafo alguém com apenas 38 anos. A roupa de hospital parece mais pobre, indigente. A cabeça se inclina, caída de lado, impedindo o olhar frontal e desafiante de quem resistira ao sequestro policial anos antes. O cabelo está crescido, mostrando um desleixo anterior ao internamento. Do todo emana um desalento doloroso, abandono, desistência.
Se houvesse uma legenda para a foto, esta seria o registro que faz ao iniciar as anotações do diário do hospício que mantém durante esse período de reclusão, no dia 4 de janeiro, lembrando-se da internação anterior, as duas motivadas pela mesma razão, o delírio causado pelo abuso do álcool: “Estou seguro de que não voltarei a ele pela terceira vez; senão saio dele para o São João Batista, que é próximo”, escreve, referindo-se ao cemitério do bairro carioca de Botafogo.
NO FIM DA VIDA, O OLHAR PARA DENTRO
Difícil ler uma fotografia que nos impacta sem se lembrar de A câmara clara.14 Naquele que seria seu último livro publicado em vida, Roland Barthes ressalta que seu ponto de vista é o de um amador, para quem é impossível tratar da experiência fotográfica “como fotografia-segundo-o-fotográfo”, só dispondo de duas experiências: “A do sujeito olhado e a do sujeito que olha”. Nas fotos que analisa, Barthes reconhece sempre um punctum, um pormenor que chama a atenção, um objeto parcial. “O punctum de uma fotografia é esse acaso que nela me fere (mas também me mortifica, me apunhala).” E, mais, “o punctum é um suplemento: é aquilo que acrescento à foto e que, no entanto, já está lá”. Na foto de Lima, o punctum é talvez o olhar perdido, recusando-se, ao contrário da foto de 1914, a olhar quem o fotografa. É para dentro que o interno parece olhar, olha e não vê. É um olhar que não mira adiante, mas olha para dentro, refugiando-se daquela mesma realidade de que obsessivamente costumava se ocupar.
O que se vê na foto identificadora é também descrito na curta anamnese: “É um indivíduo precocemente envelhecido, de olhar amortecido, fáceis de bebedor, regularmente nutrido. Perfeitamente orientado no tempo, lugar e meio, confessa desde logo fazer uso, em larga escala, e parati: compreende ser um vício muito prejudicial, porém, apesar de enormes esforços, não consegue deixar a bebida.”15 É dura a observação que se segue: “Indivíduo de cultura intelectual, diz-se escritor, tendo já quatro romances editados, e é atual colaborador da Careta”. A palavra o recolhido ao hospício não merece crédito, e o desconhecimento de sua obra pelo médico coloca em dúvida a própria condição revelada de escritor. Em A ordem do discurso, Michel Foucault nos lembra que o louco é aquele cujo discurso não pode circular como os outros, não tem verdade nem importância, não pode testemunhar em justiça, embora o pior dos criminosos possa fazê-lo.
Durante suas pesquisas sobre o escritor, Francisco de Assis Barbosa pediu, diversas vezes, informações a quem com ele tivera a oportunidade de conviver. O escritor Ribeiro Couto envia por carta depoimento emocionante sobre Lima Barreto, tão importante que, mesmo longo, merece ser reproduzido.
Meus contatos com ele foram, sobretudo, na Associação de Imprensa (em frente ao teatro Lírico), na livraria Schettino e na rua, à porta de outras livrarias ou de um botequim. Isso entre 1918 e 1920. (Na Associação de Imprensa o amigo do Lima era o Noronha Santos.) Eu, com 20 anos, tendo lido o Isaías Caminha, Policarpo Quaresma e o Gonzaga de Sá, não podia compreender como aquele grande escritor, de tão puro estilo, tão natural, precisamente o “antimulato” em matéria de estilo, fosse o mesmo “Lima” – “O Lima, não sabe?” – de barba por fazer, chapéu de palhinha encardida, camisa suja e manchada no peito, roupa coçada, mal cheirosa, com morrinha que não se sabia se era de vômitos da véspera ou suor azedo. Como tanta grandeza e tanta pureza podiam viver sob aquela crosta áspera de mulataço vermelho? A vermelhidão do Lima impressionava-me também; eu ficava sem saber se era álcool ou febre. E, no andar, uma calma perfeita, como para dominar a tendência do cambaleio. “Então, Lima Barreto, como vai?” Na verdade, ele me dava pouca confiança, salvo quando estava bêbedo.16
Nessa última foto de sua vida, comparada às anteriores, Lima Barreto traz mais fortes as marcas atribuídas ao mulato: o cabelo maior está mais crespo, o nariz mais largo, mas os lábios são finos. É como um pardo que, entre delírios, declara ser escritor que o interno é recebido. A essa segunda internação, mais longa, documentada no diário escrito no hospício, é frequentemente atribuída uma recepção melhor. No dia seguinte à entrada, é transferido para a seção Calmeil, enfermaria onde fora criado um sistema de open door, ou seja, os pacientes tinham mais liberdade de circular pela instituição, o que foi importante para Lima no uso da biblioteca. No diário, Lima registra a simpatia do diretor, em quem destaca a doçura, a paciência e a simplicidade. Não menciona, porém, que uma das razões da simpatia poderia estar no fato de Juliano Moreira ser, também ele, mulato de origem pobre. Quanto aos outros médicos, lhe parecem todos de “ciência muito curta”, arrogantes. Mesmo o sofisticado Humberto Gotuzzo, introdutor da psicanálise no Brasil, o fez “arrepiar de medo”.
Dentre a correspondência reunida por Chico Barbosa, consta uma carta datada de 1º de outubro de 1952 do então diretor da Colônia Juliano Moreira, instituição que sucedeu ao Hospício Nacional. O racismo implícito nas observações do diretor, 30 anos depois, ao tratar do “caso Lima Barreto”, mostra bem o que o escritor deve ter vivido em 1919. Diz o dr. Heitor Pérez:
Pode o estudioso chegar a interpretação diversa da sua para explicar o “caso Lima Barreto”, deixando de lado o conceito nitidamente adleriano do sentimento de inferioridade (racial, de cor) que o sr. adota, e seguir a exegese freudiana, buscando na impotência sexual de Lima Barreto o “primum movens” do seu fracasso, da sua toxicomania; a doença, o alcoolismo, assim considerando, seria a “cobertura” para mascarar a sua realidade: a sua timidez sexual, a sua incapacidade de amar concretamente. O sentimento de “cor”, esse ele o superou através da literatura, onde se desforra de várias maneiras, sentimento que leva mesmo a exibir aquilo que é proibido do mulato – uma atitude paranoide (supervalorização dos seus dotes intelectuais, egofilia, autojulgamento megalômano, ressentimento etc.). Assim, a interpretação psicanalítica global definiria o bifronte Lima Barreto: alcoolismo como “fuga” da timidez, da incapacidade sexual, amorosa, e, literatura, agressiva, irônica, “brutal”, cheia de “charges”, como superação do sentimento de inferioridade étnico-social.
Ao final da carta, a mesma convicção da inferioridade dos não brancos se estende a Juliano Moreira, apesar da admiração que tinha pelo mestre, quando comenta: “Foi o mesmo Juliano, cuja grandeza de caráter e cuja grandeza de espírito resistiram à pobreza, à inferioridade de cor, à doença e ao ostracismo”.17
Ao sair do hospício, pouco tempo de vida resta ao escritor, que morre jovem, aos 41 anos. O trabalho como cronista, colaborando regularmente para a Careta, se intensifica. A combatividade dos textos tratará dos limites a que a noção de pátria pode levar na percepção de quem afirma: “Não sou nacionalista”. A vida no centro da cidade, as articulações políticas, o papel do congresso continuam ocupando sua atenção. De sua própria imagem ocupa-se pouco, mas exibe certo orgulho por seu esbodegado figurino.
O que há de novo neste momento em que o abalo sofrido pela saúde provoca frequente confinamento em Todos os Santos é o surgimento de uma simpatia pela vizinhança suburbana anteriormente pouco tolerada. Até mesmo o carnaval começa a ser visto com alguma simpatia. Os bailes e divertimentos suburbanos merecem sua atenção.
O autor tenta recriar ficcionalmente a experiência que vivera no romance Cemitério dos vivos, que fica, porém, inacabado. Talvez tenha preferido deixá-lo assim. Nenhuma ficção narraria o período de internação como o fizeram as anotações redigidas no próprio espaço da dor.
Ao final da vida quer retomar o que teria sido o grande projeto de vida, o Germinal negro. Contenta-se em finalizar o romance Clara dos Anjos.
A primeira versão de Clara dos Anjos é o conto publicado em Histórias e sonhos, coletânea organizada pelo próprio autor em 1920. O romance só sairá como folhetim após sua morte, de janeiro de 1923 a maio de 1924. A primeira edição em livro é de 1948.
De toda a vasta obra de Lima Barreto, Clara dos Anjos, romance que a cada leitura me agrada mais, me parece ser o que mais equívocos provocou. A forma mais livre, mais moderna, mais coloquial, influenciada talvez pela linguagem do jornalismo que praticava intensamente, foi considerada falha de estilo ou rigor. Foi também a que mais fortemente fez surgir preconceitos, alguns ocultos sob a força da inteligência de críticos que, no entanto, não podiam fugir completamente às ideias de seu tempo em relação não apenas ao tema da raça, mas também ao comportamento de mulheres.
A narrativa passa-se, com exceção de um único capítulo, nos subúrbios do Rio de Janeiro, para além dos limites traçados pela linha férrea dos trens da Central. Algumas são áreas mais próximas do centro da cidade, o Méier e o Engenho de Dentro, onde habita uma classe média próxima ao operariado, formada por funcionários públicos ou pequenos negociantes. Em outras, mais distantes, ficavam as moradias de operários, funcionários ainda mais subalternos ou simplesmente aqueles que a modernização do país introduzida pela República tornara pobres. É onde Lima Barreto vai morrer.
O final do romance é o diálogo entre “a jovem mulata de porte elegante e sonhadora” e a mãe, que se encerra com a frase: “– Nós não somos nada nesta vida”. Uma despedida.
Muito poderia ter sido feito, mas a morte precoce o surpreende com um colapso quando, deitado, lia a Revue des Deux Mondes. Também de sua despedida não haverá qualquer imagem. As fotos do hospício são realmente as últimas.
Essa carência de registro lembra, por contraste, as diversas fotos do enterro de Machado de Assis, em setembro de 1908. Dessas, a mais impressionante é a que registra a saída do corpo da sede da Academia Brasileira de Letras, fundada por ele. À porta do Petit Trianon, os acadêmicos acompanham o caixão, circundados pela multidão. A imagem de Euclides da Cunha, ao fundo, com um olhar perdido em outra direção, é um punctum. Transtornado ou enlouquecido, parecia preparar-se para buscar a morte no ano seguinte.
Morto, Lima Barreto fará a última viagem de trem, deixando o subúrbio para dirigir-se a Botafogo. O caixão terá que parar na estação da Central e dali ser levado para o cemitério de São João Batista, um dos poucos luxos de sua vida. Consta que o empréstimo feito pelos amigos para custear o enterro foi pago com a venda da biblioteca do escritor.
Se não ficaram fotos, fica, ainda uma vez, uma crônica, a de Eneias Ferraz para O País, publicada em 20 de novembro de 1922. Mais um documento precioso do arquivo do escritor, texto que vale, certamente, por uma foto.
Ao longo das ruas suburbanas, de dentro dos jardins modestos, às esquinas, à porta dos bote quins, surgia, a cada momento, toda uma foule anônima e vária que se ia incorporando atrás do seu caixão, silenciosamente. Eram pretos em mangas de camisa, rapazes estudantes, um bando de crianças da vizinhança (muitos eram afilhados do escritor), comerciantes do bairro, carregadores em tamancos, empregados da estrada, botequineiros e até borrachos, com o rosto lavado em lágrimas, berrando, com o sentimentalismo assustado das crianças, o nome do companheiro de vício e de tantas horas silenciosas, vividas à mesa de todas essas tabernas.18
Voltemos ainda uma vez às duas fotos, por tanto tempo desconhecidas, esquecidas, rejeitadas, guardadas talvez em algum carro-forte destinado a transportar loucos. Estiveram elas realmente perdidas por todo esse tempo ou nós é que não as suportamos olhar?
Beatriz Resende é ensaísta e pesquisadora de vasto espectro de interesses. Professora titular da Faculdade de Letras da UFRJ, é autora de Lima Barreto e o Rio de Janeiro em fragmentos (Autêntica, 2015), Apontamentos de crítica cultural (Aeroplano, 2000) e Contemporâneos – Expressões da literatura brasileira no século XXI (Casa da Palavra, 2008). Organizou, dentre outras, as coletâneas Cocaína, literatura e outros companheiros de viagem (Casa da Palavra, 2006) e Possibilidades da nova escrita literária no Brasil (Revan, 2014).
Edição: Roberto Lisboa
Fonte: Site do Instituto Moreira Sales
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