Crônica da atualidade por: Décio Tadeu Orlandi

Texto rico em detalhes e que me faz refletir sobre o que nós brasileiros nos acostumarmos a reclamar e no entanto, deveríamos exigir. Porém, somos cúmplices de uma famigerada sociedade que prefere "empurrar com a barriga" para avivar ainda mais o tal do "empurrograma". (PV)

E Nilson Mesquita, também teceu comentários sobre o assunto: "Excelente texto!
Esse cenário é muito comum mesmo. Acredito que o comportamento moral prevalece sobre as leis, que nada mais são do que padronizar e organizar o que já são regras naturais de convivência, onde o respeito ao próximo, o cumprimento de seus deveres perante a sociedade e a  consciência de seus próprios direitos é na minha opinião o que deveria mover nossa participação social. O exemplo do metrô na Suécia é impressionante."

Domingo. Saguão de uma conhecida escola particular de Goiânia. Havia levado minha filha de dez anos para participar de um torneio interescolar de xadrez. A instrução que havia recebido era clara: início das partidas às 10 horas. Nada complicado, ou esotérico ou impossível, apenas um breve comando: início das partidas às 10 horas. Cheguei às 9h45. Às 10h05, minha filha estava sentada diante de uma cadeira vazia… A sua oponente chegou, esbaforida, quase 20 minutos depois. Ao seu lado, o pai, munido das tradicionais desculpas: distância, trânsito.  Trânsito? No domingo de manhã? Não havia trânsito.  
Depois de que a menina se sentou diante da minha filha, como se nada houvesse, muitas outras crianças ainda chegaram, acompanhadas por seus pais e com as mesmas desculpas. Todos entravam no auditório cujas portas fechadas traziam um enorme cartaz onde se lia: Não entre. Para evitar me aborrecer mais ainda com a balbúrdia, eu fui sentar longe das portas. Por todo o saguão, crianças pequenas começavam a correr de um lado para outro, gritando (e atrapalhando os enxadristas, mas e daí?) sob o olhar indiferente de seus pais, e contrariando um claro aviso na parede: Não corra, evite acidentes. Enfim, saímos... E encontramos nosso carro “fechado” por uma pick-up estacionada na esquina e sobre a calçada.  
No almoço, num grande shopping, famílias corriam para segurar uma mesa (pouco importando o aviso que indicava ser preferencial), disfarçando com seus celulares enquanto pessoas com o prato na mão (algumas idosas) vagavam buscando um lugar para sentar. Pedi um sanduíche sem cebola, mas elas estavam lá, pois o atendente não leu o pedido. No cinema, tive de pedir para a jovem na minha frente parar de teclar, pois a luz não me deixava ver o filme. Acabei a noite de volta a meu apartamento, subindo com um cachorro me cheirando no elevador social - expressamente proibido -, e pedindo silêncio ao meu vizinho de cima que se imagina cantor sertanejo e estava dando um show intimista à meia noite.  
Enquanto rolava na cama, tentando ignorar o violão desafinado, tive uma visão. Sim, tudo estava claro agora, tão claro quanto o celular da moça no cinema. Estava aí, o tempo todo, na nossa frente, no nosso dia a dia, a origem de todos os males do Brasil. A nossa própria essência como nação, nossa alma verdadeira,  aquela que “olha de dentro para fora”, como diria Machado de Assis. Como podia ser tão simples,  afinal, e passar tão despercebido? A verdade simples e crua é que o brasileiro não é capaz de cumprir regras! Só isso. 
Incapacidade crônica de cumprir regras. Por isso somos o país com o maior número de leis no mundo - e, como não as cumprimos, nossos legisladores criam novas leis que por sua vez não serão cumpridas, o que vai gerar outras leis, num ciclo infinito… Posso falar por horas sobre este tema: sou Professor há 25 anos e já ouvi (é verdade que nunca tanto quanto agora) tantas desculpas esfarrapadas de alunos e também de pais para burlar as mais simples regras do cotidiano escolar. Assim como a menina de dez anos no torneio de xadrez, que aprendeu na prática com o seu pai que as regras não existem na verdade aqui, e que qualquer problema se resolve miraculosamente com uma mentira qualquer - foi o trânsito…  
“Fiz mal a prova porque não estudei!”. Jamais!  A culpa é do Professor que me persegue, do bullying que sofro dos meus colegas,  da escola que não me entende, da educação que é repressora, da sociedade, do destino, de Deus! Ora, meus irmãos, ponhamos as nossas mãos cheias de culpa na consciência brasileira tão enferrujada e admitamos: somos nós que não sabemos seguir regras simples e que transformamos esse país tão lindo em um purgatório perpétuo.  
O problema da violência no trânsito é que não cumprimos as regras do trânsito.  Simples assim. Corrupção no governo?  Normas que são burladas,  tanto por quem contrata quanto por quem é contratado, diga-se de passagem. Há milhares de leis, mas não para mim. Eu ignoro, eu dou desculpas, eu passo por cima. Pode nomear o problema, meu caro leitor, e eu lhe darei a mesma causa: incapacidade crônica de cumprir regras. Duvida? A crise hídrica que vai acabar nos matando de sede vem de onde? De leis que são ignoradas – até as do bom senso, como a dona de casa que gasta centenas de metros cúbicos de agua para deixar sua calçada brilhando (ah, sim, o lixo ela empurra discretamente para o vizinho). Mas a calçada estava tão suja! Mas foi só uma vez! Mas, afinal, todo mundo faz isso, não é mesmo?  
Esse processo perigoso e contagioso só vem se agravando… E vai levando o país, inexoravelmente, para o caos, de onde não nos ergueremos jamais, como a alma de Poe presa à sombra do corvo, no seu poema famoso. A menos que algum milagre se opere nas mentes de nossos conterrâneos, e aquele pai, antes de sacar do bolso alguma desculpa pronta para “proteger” seu filho de alguma coisa que ele deveria ter feito e que não fez, antes disso, perceba que está oferecendo à sociedade brasileira mais um cidadão irresponsável, incapaz de assumir seus erros, que não vai nunca se adaptar a um emprego (sim, em que há regras!), e que, se por nossa infelicidade, for aprovado num concurso público qualquer não vai se especializar em desviar as verbas públicas para seu próprio cofre.  
Estamos morrendo nas ruas, nos carros, morrendo de fome, de raiva e de sede simplesmente porque não ensinamos nossos filhos a cumprir as leis que regem a vida em sociedade. E lamento constatar que não estamos nem perto de começar a fazê-lo agora…  
Há alguns anos, entrei numa estação de metrô em Estocolmo, a tão civilizada capital da tão primeiromundista Suécia, e notei que havia entre muitas catracas comuns uma de passagem livre. Questionei a vendedora de bilhetes o porquê daquela catraca permanentemente liberada, sem segurança por perto, e ela me explicou que era destinada às pessoas que por qualquer motivo não tivessem dinheiro para pagar a passagem. Minha mente incrédula e cheia de jeitinhos brasileiros não conteve a pergunta óbvia (para nós!): “E se uma pessoa tiver dinheiro e simplesmente quiser burlar a lei?”.  
Aqueles olhos suecos e azuis se espremeram num sorriso de pureza constrangedora e a vendedora me perguntou: “Mas por que ela faria isso?”. Não lhe respondi. Comprei o bilhete, passei pela catraca e atrás de mim uma multidão que também havia pago por seus bilhetes. A catraca livre continuava vazia, tão vazia quanto minha alma brasileira - e envergonhada.   


Edição: roberto Lisboa
Texto:  Décio Tadeu Orlandi