Crônica da Semana - Por Eduardo Machado

O capitalismo é o principal causador do êxodo rural, comprometendo muitos outros setores. O texto do Eduardo faz comparativos que se assemelham com o avanço dado pelo capitalismo que alimenta a modernização. (PV)




           
      Meu trabalho como educador me fez testemunha de mudanças radicais acontecidas nessas últimas quatro décadas. Nesse período, por exemplo, o Brasil mudou-se do interior para a capital. 
            Em 1974, quando comecei minha carreira de professor de ‘carteira assinada’, mais de 60% da população brasileira viviam no interior, em cidades de médio para pequeno porte, enquanto pouco mais de 30% moravam em grandes centros urbanos. Em quatro décadas esses números literalmente se inverteram, o que gerou um impacto brutal na cultura, na economia, no horizonte pessoal e social dos jovens e, de resto, de toda a população.
            Nesse mesmo período assistimos à revolução da Informática, que virou o mundo de cabeça pra baixo e pelo avesso. Família, Religião, Comunicação, Entretenimento, Consumo, Trabalho, tudo o que sabíamos, tudo o que era certeza, foi deletado e reeditado. De uma geração para outra, mudanças radicais.
Esse processo continua hoje, cada vez mais acelerado. Graças ao Google, Facebook, Twitter, Wikipédia e outros sites e redes do gênero, sabemos, hoje, cada vez menos sobre cada vez mais. O mundo, hoje, é plural, ecológico, sustentável, pelo menos no discurso. Na prática vemos preconceito, intolerância e violência. Se as crianças de hoje não concebem a ideia de matar um passarinho, jovens de classe média acham engraçado atear fogo a um índio, espancar prostitutas e execrar homossexuais.
            Os s jovens rebeldes dos anos 1960 envelheceram e deram à luz uma geração que pode ser traduzida em duas palavras: consumismo e pragmatismo, ou seja; o que é que a gente vai ganhar com isso?’.
            Navegamos entre hippies de butique patricinhas, punks de periferia e mauricinhos, ativistas, consumistas, conectados e alienados. Rebeldes com causas e revoltados sem causa alguma, funkeiros classe média e universitários sertanejos, politizados descrentes e crentes despolitizados, manipulados passivos e ativistas biodesagradáveis. E no meio dessa geleia global e geral, somos chamados a ser os pais e educadores do século XXI. Não é fácil.
O resultado, vejo no meu trabalho. Converso, quase todo dia, com pais angustiados que tentam se equilibrar na frágil prancha das suas poucas certezas sobreviventes, surfando a crista desse tsunami que invadiu todas as áreas do conhecimento e do comportamento humano. É muito para  a atual geração de pais e educadores que sente-se, muitas vezes, despreparada para enfrentar as fronteiras do nosso tempo e seus desafios.
Há alguns anos eu costumava fazer uma dinâmica em reuniões de pais de alunos adolescentes que era mais ou menos assim:
Mostrava um slide (é, é do tempo do slide...) onde havia o desenho de um prédio altíssimo no qual o apartamento de cobertura não tinha paredes. A construtora resolveu sortear o apartamento entre seus clientes, mas a família vencedora teria que morar nele assim, sem as paredes. Terminava com a pergunta: vocês topariam?
É claro que, no embalo da brincadeira, muita gente dizia que sim. Mas, à medida que a reflexão ia se aprofundando, a imaginação trabalhando, logo se percebia que morar num lugar assim seria um inferno. Precisamos de paredes. Precisamos de limites.
Filhos chegam em nossa vida como um rio de correnteza forte, atrevida, imprevisível, e nós, pais, como margens, vamos tentando dar um rumo, conter os excessos, prevenir enchentes. Um rio, quando extrapola suas margens, em geral, provoca estragos.
Há um momento em especial, ali entre a adolescência e a juventude, em que só as margens são insuficientes. A energia do rio alcança uma força, um nível ao mesmo tempo belo e perigoso. É preciso, então, fazer-se represa.
A represa existe para conter a força das águas, educá-las, canalizá-las, para depois liberá-las do outro lado para que possam, com serena segurança, seguir seu curso em direção ao mar da vida.
E na vida, há de tudo; desde rios sem margens até outros onde se constrói uma represa a cada cem metros. Extremos que se tocam nos resultados trágicos. Filhos "problemáticos", em geral, são frutos de famílias onde se pode tudo ou não se pode nada.
Se a água para, empoça, fica estagnada, cria lodo, lama, apodrece. Se só recebe esgoto e poluição, morre e mata. Se corre solta, sem freios ou limites, acaba por se perder, por se desperdiçar.
Por isso as represas precisam ser fortes, sólidas, sem abrir mão da sabedoria das comportas. Numa represa sem comportas, a água chega, choca-se com a parede, se acumula, sobe, transborda, passa por cima ou rompe o dique. E aí, pobre de quem estiver do outro lado...
As comportas lidam com a força das águas na medida certa. Sabem a hora de conter e a hora de liberar. Transformam a força do rio em energia que produz fartura, gera bem estar, irriga, ilumina, enriquece o solo, a vida.
É preciso pacificar a energia dos filhos com o equilíbrio da paternidade. Distinguir rebeldia (que é saudável) de revolta (que é destrutiva e execrável). Partilhar, dividir e multiplicar. Somar afetos, subtrair excessos.
Educar é fazer brotar de dentro do outro o que ele tem de melhor. E deixar fluir...
Eis aí, uma bela forma de exercer a paternidade.

Eduardo Machado
Agosto de 2008