Eu vi, tu viste, todos vimos e vivemos - Por Eduardo Machado
Vi nos olhos da moça, a mágoa e a tristeza de quem se sente abandonada, desvalorizada. No seu rosto, uma lágrima silenciosa parecia cantar:
“Você me tem fácil demais e não parece capaz de cuidar do que é seu...”.
Vi a imagem da mãe desesperada, segurando a foto do filho, assassinado num assalto. Sua dor enchia a tela da TV no programa policial que explora à exaustão todas as desumanas misérias humanas. Na sua voz, entrecortada de soluços, podia-se entrever os versos da canção:
“Oh, pedaço de mim, oh, metade arrancada de mim, leva o vulto teu que a saudade é o revés de um parto, a saudade é arrumar o quarto do filho que já morreu...”.
Vi, aos pés da imagem da santa, depois de longa peregrinação, do sertão ao santuário, os olhos miúdos do lavrador enchendo-se da água que falta na sua plantação. As contas do terço, debulhadas uma a uma, qual espiga tão seca quanto a mão estendida, a cabeça curvada em gesto filial de abandono e confiança, pareciam se entregar a esse encontro entre céu e terra:
“Como eu não sei rezar, só queria mostrar meu olhar, meu olhar, meu olhar...”.
Vi meu aluno adolescente, vivendo em tímido silêncio sua primeira paixão. Em momento de rara coragem, dividiu comigo seus sentimentos. Mais que professor me vi pai, quase irmão. Em meio à nossa conversa, a menina iluminada de 14 anos cruzou o pátio da escola, falante, alegre, alheia aos olhos amorosos que a acompanhavam cantando:
“Você me deixa a rua deserta, quando atravessa e não olha prá trás...”.
Vi o rapaz sozinho, à mesa do bar. A moça que estava com ele saíra a pouco, intempestiva, furacão de raiva que atravessou o corredor de mesas e cadeiras na calçada, desaparecendo na curva da esquina e da noite. Nas suas mãos, um bilhete, uma foto, não sei. Sorrateiro, o verso de Vinícius se ajusta, como moldura, àquela cena de anônima simplicidade:
“O amor é a coisa mais triste, quando se desfaz...”.
Vi a mulher acendendo uma vela, aos pés da imagem de Nossa Senhora de Lourdes, no nicho que imita uma gruta. A mão tão trêmula quanto a chama, os olhos divididos entre esperança e dor, rezavam:
“Cubra-me com seu manto de amor, guarda-me na paz deste olhar. Cura-me as feridas e a dor, me faz suportar...”
Vi o cidadão perplexo, lendo no jornal a notícia do mais recente escândalo do mundo político, escancarado na mídia. Na sua carteira, o título de leitor queimava feito fogo. No seu coração, também em brasa, indignação e vergonha gerando uma ira santa que parece cantar:
“Como é difícil acordar calado, se na calada da noite eu me dano. Quero lançar um grito desumano, que é uma maneira de ser escutado...”.
Vi o jovem de longos cabelos dourados, mochila às costas, violão à mão, embarcando na rodoviária para um Festival da Canção de uma pequena cidade do interior. Num acorde, seu coração vibrava:
“Cantar era buscar o caminho que vai dar no sol. Tenho comigo as lembranças do que eu era. Para cantar nada era longe tudo tão bom. Até a estrada de terra na boleia de caminhão. Era assim...”.
Era assim, é assim.
Não há novidades nas nossas lidas de amor e dor. Cada um de nós traz em si ‘os sentimentos do mundo’. O que vivemos, vivido por outros tantos e tantas e tão repetidas vezes, só é original porque acontece em nós, no nosso coração.
Nem sempre conseguimos dizer dos sentimentos que cruzam, fugazes e intensos, a rotina dos dias, assim, como a menina, sem olhar prá trás.
São poucas, parcas e pobres, nossas palavras.
Ainda bem que Deus semeou na Criação os poetas, que podem
cantar
pintar
esculpir
dança
representar
escrever
fotografar
filmar
digitalizar
e dizer,
por nós.
Eduardo Machado
14/02/2015
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