Sobre todas as coisas - Por Eduardo Machado
Ficamos tristes quando nos deparamos com situações que refletem sobre a pena de morte e nos preocupamos ainda mais, pois algum inocente poderá se postar diante de um pelotão de fuzilamento para pagar uma conta não devida. Alerto para que leiam atentamente o artigo de Eduardo Machado que destina uma reflexão para a preservação da vida em detrimento a penalização letal, mesmo ela sendo para quem realmente tem culpa. (PV)
Em busca da humanidade perdida
O fuzilamento de seis pessoas, dentre elas o brasileiro Marco Archer Cardoso Moreira, no último dia 17/01 de janeiro, na Indonésia, colocou mais uma vez em destaque a discussão sobre a pena de morte.
Archer, instrutor de voo livre, havia sido preso em 2004, ao tentar entrar na Indonésia com 13 quilos de cocaína escondidos nos tubos de uma asa delta. A legislação do país pune o tráfico de drogas com pena de morte.
Imediatamente pipocaram opiniões, debates, considerações dos mais diversos níveis de reflexão e burrice nesse território livre que é a Internet. A Rede aceita mesmo de tudo!
Percebi que muita gente buscava, de maneira clara ou camuflada, justificar a punição radical, alegando que Marco Archer sabia do risco que corria ao tentar entrar no país com a droga. Pagou pra ver com a própria vida.
No programa Fantástico, da Rede Globo, no domingo, dia 18, os apresentadores referiam-se a ele o tempo todo como “o traficante” Marco Archer. O que ele realmente era, o que levou muita gente a criticar a presidente Dilma pelo apelo que fez em favor do brasileiro. O argumento, fácil, é de que ela devia manifestar-se também contra a violência aqui mesmo, no Brasil.
Dados de 2012, os mais completos e atualizados da violência, indicam que em um ano 56.337 pessoas foram assassinadas, numa pena de morte informal que é executada diariamente nos quatro cantos do nosso país.
Diante desses e de outros números no mapa da violência no Brasil, a execução de Marco Archer, traficante, réu confesso, que, segundo as autoridades indonésias, teve cumpridas todas as etapas e prerrogativas de um processo legal, parece irrelevante. Mas não é...
A pena de morte, para mim, é símbolo poderoso do fracasso moral de qualquer civilização, e tem que ser questionada. É um ato de barbárie que tem sido banido da legislação da maioria dos países, mas que tem ressurgido com força no discurso daqueles que, dizendo se indignar com a violência, querem responder com mais e mais violência.
Um dos grandes motivadores desse recrudescimento do desejo de vingança, traduzido pela pena de morte, que comprovada e estatisticamente não resolve o problema da violência, são as ações terroristas que se multiplicam pelo mundo.
Al Qaeda, Boko Haran, Estado Islâmico, organizações que, teoricamente em nome de uma religião, o Islã, mostram pessoas sendo decapitadas diante das câmeras, reféns sendo executados por uma criança, outra, uma menina de 10 anos, transformada em bomba ambulante, explodindo e matando dezenas de pessoas num mercado, na Nigéria, terroristas invadindo a redação de um jornal e dizimando todos que ali estavam, pessoas que faziam compras numa prosaica mercearia transformadas em reféns, sendo que quatro são assassinadas a sangue frio. Tudo isso no espaço de alguns poucos dias, sem falar nas outras mortes, anônimas, que viram apenas números e estatísticas na contabilidade do terror doméstico.
Num noticiário da TV, o repórter dizia que tudo isso começou com o 11 de setembro, segundo ele, o maior ato de terrorismo da História, quando foram derrubadas as torres gêmeas, em Nova York. O jovem repórter deveria ser lembrado que, na verdade, os maiores atentados terroristas da História aconteceram durante a Segunda Guerra Mundial: o Holocausto, com o assassinato premeditado de seis milhões de judeus sob o regime nazista, e o ataque nuclear americano a duas cidades japonesas, Hiroshima e Nagasaki, incinerando, numa fração de segundo, mais de duzentas mil pessoas, homens, mulheres, crianças, jovens e idosos.
A pena de morte tem sido usada demais pela Humanidade desumanizada. É preciso parar e repensar...
Repensar... para isso, quero recomendar um filme, “Os últimos passos de um homem”, inspirado na história real de uma freira católica, nos EUA, que acompanha os últimos dias de um condenado no corredor da morte.
O filme convida a uma reflexão radical, uma vez que o condenado, interpretado magistralmente por Sean Penn, é o que se pode chamar de “escória da humanidade”. Racista, nazista, estúpido, violento e... culpado de estupro e assassinato a sangue frio. Se for considerado o critério de “merecimento”, ninguém merece, mais que ele, a pena capital.
Mas a freira, papel que deu a Susan Sarandon o Oscar de melhor atriz em 1995, consegue enxergar por trás de todo aquele ódio e maldade, um ser humano. E, para ela, as pessoas valem por isso, porque são humanas. E é possível e preciso resgatar essa humanidade sepultada sob toneladas de egoísmo, violência e brutalidade.
Veja o filme. Tire suas próprias conclusões. Eu tenho as minhas.
Penso que a pena de morte, além de não resolver o problema da violência, é desumana e desumanizante, um retrocesso no nosso processo civilizatório que começou com a Lei do Talião, a do olho por olho, dente por dente, chegou ao tribunal do júri e às cortes de justiça, como o Supremo Tribunal Federal. Com essas instâncias e mecanismos, mesmo com todos os defeitos que possam ter, aprendemos que fazer justiça é uma coisa, promover vingança é outra muito diferente.
Ainda sobre a pena de morte, além de ineficaz, do ponto da sua intenção prática, reduzir a criminalidade, o ato de executar, ainda que ‘legalmente’ uma pessoa, poderia ser enquadrado em vários quesitos usados pela mesma legislação para caracterizar o chamado “crime hediondo”. É violência premeditada, levada a efeito por meios cruéis e recursos que impedem a defesa da vítima, precedida de tortura (física e psicológica), além de ser fruto de formação de quadrilha e associação para o crime (juntando o júri, a promotoria, o juiz e a plateia).
Nos nossos dias, tivemos uma experiência que deveria servir de luz para toda a Humanidade, mas como aconteceu na África, o continente esquecido, nunca teve sua dimensão devidamente considerada.
Depois de décadas do regime oficial de segregação racial, na África do Sul, que institucionalizou o racismo e a violência, eleições multirraciais e democráticas, em 1994, foram vencidas pelo Congresso Nacional Africano, sob a liderança de Nelson Mandela.
Imaginava-se, então, que os negros, chegando ao poder com Mandela, que havia ficado 26 anos nas prisões do regime racista, levariam a África do Sul a um banho de sangue e vingança.
Mandela organizou uma Comissão da Verdade para apurar todos os crimes cometidos durante o apartheid, e chamou o arcebispo anglicano Desmond Tutu para presidi-la. Ele aceitou, mas com uma condição: que o grupo fosse rebatizado de Comissão da Verdade e da Reconciliação, lembrando um conceito budista que diz: o ódio nunca poderá ser aplacado pelo ódio. O ódio só pode ser superado pelo amor. A mesma mensagem encontramos nas palavras de Jesus, que conclamava a “amar os inimigos”.
Outro grande pacifista do século XX, Mahatma Gandhi, dizia: “se nossa opção de justiça for o olho por olho, dente por dente, acabaremos vivendo num mundo de cegos e banguelas”.
Não são palavras vazias. Os homens que as disseram deram e dão sua vida por elas, fazendo opções duras, difíceis, mas eficazes. A alternativa do ódio, da vingança, conduz a uma espiral de mais ódio, mais violência e mais vingança, como vemos em inúmeras situações na História, no passado e no presente de tantos povos.
A pena de morte, repito, é nosso fracasso moral e civilizacional. É a barbárie oficial institucionalizada. E aqueles que a defendem sabem disso. Tanto que hipocritamente, dos dez fuzis usados pelos soldados na execução, apenas dois usam balas de verdade, as outras são de festim. Assim, dizem os hipócritas, os soldados não saberão quem foi, de fato, aquele que executou a vítima amarrada, vendada e indefesa.
Volto a Desmond Tutu, Nobel da Paz em 1984, que diz: “Se você é neutro em situações de injustiça, você escolheu o lado do opressor. Sem perdão não há futuro para o relacionamento entre indivíduos nem entre nações”.
Diante de um pelotão militar que tentava impedir uma passeata de pacifistas africanos, ele disse aos seus companheiros de manifestação: “sejam gentis com os soldados. Eles precisam de nós para redescobrir sua humanidade perdida...”.
Diante de tanta violência nos sentimos ameaçados, acuados, esquecidos de que somos, todos, irmãos. Num cenário assim, é compreensível sentir o desejo de retaliar, em legítima defesa, até se vingar. Mas, uma coisa é sentir, outra é consentir.
A ira que por vezes nos rodeia e invade, não pode nos dominar. Precisamos nos lembrar de onde viemos, quem somos, para onde vamos.
A execução de Marco Archer, o assassinato de milhares de pessoas, os atos de terrorismo que nos deixam perplexos, os sentimentos contraditórios de medo e vingança, em nós, convidam a perguntar: quem vai nos ajudar a redescobrir a nossa humanidade perdida?
Eduardo Machado
Janeiro de 2015
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