Mensagem da Semana
“Existem verdades que a gente só pode dizer depois de ter
conquistado o direito de dizê-las.” (Jean Cocteau).
“Não existe mulher meio-grávida”.
Foi desta maneira que meu pai me ensinou que
há situações nas quais inexiste o meio-termo. Ou é, ou não é.
Da mesma forma eduquei-me acreditando que a verdade
também não admite interpretação dúbia. Como diria um provérbio iídiche,
meia-verdade é uma mentira inteira.
Em tempos de crise de valores, quando a
integridade, a idoneidade, a dignidade e tantas outras virtudes se despedem,
tornando-se peças de museu, artigo raro seja na gestão pública, no mundo
corporativo ou nas relações interpessoais, adotamos a verdade com vigor
ainda maior. Primeiro, por princípio. Segundo, porque ela sempre vem à tona,
cedo ou tarde.
Mas aí, como disse certa vez Luís Fernando
Veríssimo, quando a gente acha que sabe todas as respostas, vem à vida e muda
todas as perguntas.
Escrevi um artigo intitulado “A fragilidade da
vida” no qual relato a experiência da descoberta de um câncer que acometeu meu
pai. O fato nos foi revelado após exames para diagnosticar o que parecia ser um
AVC (acidente vascular cerebral).
E durante vários dias vivenciamos um dilema: os familiares sabiam que era um
tumor maligno, enquanto meu pai imaginava tratar-se apenas de um breve coágulo
no cérebro.
Quando penso em meu pai, sempre me vem à mente uma
pessoa ativa, dinâmica, criativa e muito batalhadora. Com pouca instrução, teve
a capacidade de promover grandes realizações em sua vida. Proporcionou
estudo aos seus cinco filhos e jamais permitiu que algo nos faltasse. Domina a
matemática de maneira invejável para muitos estudantes de nível superior.
Porém, ao lado de tantos aspectos positivos, há um contraponto tenaz: um
terrível hábito de cultivar o pessimismo em momentos de adversidade.
Este aspecto já nos distanciou algumas vezes.
Chegamos a trabalhar juntos por alguns anos, mas a divergência entre nossas posturas
era objeto constante de conflito. Perante uma vicissitude ou uma oportunidade,
eu sempre acreditava que seria possível, que daria certo. Já meu pai partia do
pressuposto de que o jogo estava perdido.
Conhecendo este padrão de comportamento eu sabia que
o ideal seria omitir a verdade sobre sua doença. Afinal, a cabeça comanda o
corpo, de modo que em seu período de maior debilidade física, o melhor seria
fazê-lo acreditar que tudo era relativamente simples e passageiro
Contudo, hospitais trabalham com protocolos
médicos. E um deles determina que todo paciente deve ser esclarecido com
franqueza sobre seu quadro clínico e o tratamento ao qual será submetido.
Diante disso, o pneumologista sentenciou: “Ou vocês, familiares, contam a ele o
que está se passando, ou contaremos nós”
Minhas irmãs decidiram por consenso que esta tarefa
caberia a mim. E dois dias depois lá estava a sós com meu pai, em seu quarto,
ao lado de seu leito. Solicitei-lhe que se sentasse, por um instante, de frente
para mim. Segurei-lhe as mãos e reproduzo a seguir um resumo do diálogo que
sucedeu:
– Pai, você acredita em Deus?
– Sim, acredito!
– E confia em mim?
– Com toda certeza, meu filho.
– Pois então, seu problema é um pouco mais grave do
que imaginávamos...
– Eu já sabia... Mas não me conte. Eu não quero
ouvir! Não quero! (virando o rosto)
– Mas eu preciso lhe dizer, porque ou você ouve de
mim, ou ouvirá dos médicos. Você está com um tumor no pulmão. É algo raro,
ainda mais para quem, como você, nunca fumou. E o coágulo em seu cérebro é uma
consequência deste tumor.
– Então estou liquidado...
– Pai, deixe de pensar assim! Há tratamento, há
cura, e é por isso que você está aqui, num dos melhores hospitais do país e com
ótimos especialistas.
– É verdade? Mas me diga uma coisa, meu filho: isso
não é câncer não, certo?
– É pai. É câncer. Tumor e câncer é a mesma coisa.
Pouco importa o nome que se dê, mas sim que a medicina está muito evoluída e
que juntos vamos sair desta.
Após esta conversa, senti que sua aceitação foi
muito positiva. As lágrimas que rolaram foram menos intensas do que se poderia
esperar. Mas fundamentalmente notei que ele decidiu abraçar a luta pela vida,
em vez de entregar-se à enfermidade.
Eu poderia ter lhe dito que o tumor era maligno.
Que seu estágio era avançado, alcançando os dois pulmões e que o edema no
cérebro resultava de uma metástase, caracterizando a evolução da doença.
Poderia ter lhe dito que os oncologistas trabalhavam com expectativa de vida e
que a luta não é pela cura, mas pelo que chamam de sobrevida. Mas optei
conscientemente pela omissão. E descobri que há circunstâncias em que, sim,
cabem meias-verdades. Porque elas aliviam, em lugar de ferir. Porque elas não
são um erro, nem tampouco um acerto, mas apenas o adequado. Porque elas podem
confortar e promover a esperança. Uma verdade oculta não é uma mentira
contumaz.
Nietzsche dizia: “Não pretendo ser feliz, mas
verdadeiro”. Abro mão da verdade plena e da minha felicidade, para ver feliz
quem amo.
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