A Venezuela para além das torcidas
por Jean Wyllys — publicado 22/02/2014 22:29, última modificação 22/02/2014 22:47
MARTIN BERNETTI / AFP
Se as colunas de jornais se transformaram em torcidas contra (muito mais) e a favor de Maduro, imaginem as redes sociais, onde vigoram as "opiniões" tão apressadas quanto rasteiras! Ora, a situação da Venezuela é complexa demais para qualquer tentativa de reduzi-la a declarações de "Fora, Maduro!" ou "Viva Maduro!". Tratar o problema da Venezuela em clima de torcida é, na minha opinião, um grave equívoco.
Vamos tentar sair dessa polarização improdutiva?
Negar os avanços sociais conquistados pelo povo mais pobre da Venezuela durante os governos de Hugo Chávez é tão equivocado quanto negar os problemas que o país enfrenta na atualidade, com uma inflação de 56%, desabastecimento de produtos essenciais, um dos índices de homicídios mais altos da América Latina, violência nas ruas e uma polarização política que divide o país em dois.
Esquecer que a oposição de direita já tentou derrubar o governo Chávez mediante um golpe de Estado em 2002 é tão equivocado quanto chamar de "golpista" qualquer opositor, acusar de "golpista" qualquer manifestação popular contra o governo e não reconhecer que a oposição atual tem outras lideranças e participou das últimas duas eleições presidenciais, acatando as regras do jogo democrático.
Dizer que o chavismo — que ganhou reiteradas eleições e referendos com absoluta transparência e com observadores internacionais — é uma "ditadura" é tão equivocado como não repudiar o autoritarismo do regime, o culto à figura do líder que lembra os totalitarismos do século XX, a militarização da sociedade, com milícias "bolivarianas" armadas pelo Estado que respondem ao partido e uma lógica política autoritária que identifica como "inimigo da pátria" todo aquele que se opõe ao governo.
Dizer que não há liberdade de imprensa da Venezuela, onde funcionam jornais e canais de televisão oposicionistas, é tão errado quanto não reconhecer que, na última semana, essa liberdade se viu ameaçada pelo presidente Maduro, que ordenou cortar o sinal do canal de notícias colombiano NT24 e anunciou que poderia expulsar do país os repórteres da CNN e cancelar as licenças da emissora. Questionar a cobertura da CNN, que nunca foi um bom exemplo de ética jornalística, é tão legítimo quanto questionar a Telesur, que funciona como emissora de propaganda do governo e defende as ditaduras da Síria e do Irã — mas a liberdade de imprensa é um princípio inegociável e o questionamento não pode vir junto com o pedido de censura.
Como eu disse, a situação é complexa e difícil de resumir. Creio, no entanto, que existem alguns princípios fundamentais que podem guiar nossos posicionamentos, independentemente da opinião que cada um de nós possa ter sobre o governo Maduro e a oposição venezuelana:
1) Nicolás Maduro é o presidente constitucional da Venezuela, eleito democraticamente pelo povo, e teve sua vitória reconhecida pelo candidato da oposição, Henrique Capriles. Qualquer tentativa de derrubá-lo, como aconteceu com Chávez em 2002, seria um golpe de estado e mereceria nosso absoluto repúdio. A defesa da democracia é inegociável.
2) Defender a democracia, porém, não significa necessariamente apoiar quem está no poder. Diante de qualquer tentativa de golpe de Estado no Brasil, eu defenderia o mandato constitucional da presidenta Dilma Rousseff, mas eu faço parte da oposição a esse governo. Ou seja, se a coalizão liderada pelo PT/PMDB tiver que ser derrotada, isso deve acontecer nas urnas, por decisão do povo. Da mesma forma, defendo o mandato constitucional de Maduro, mas não endosso suas políticas.
3) Os venezuelanos que estão insatisfeitos com a situação do país têm direito a protestar contra o governo. Protesto não é golpismo — mesmo que alguns governistas o digam, tanto cá quanto lá —, mas exercício de um direito civil fundamental. Esse argumento já ouvimos dos petistas mais fanáticos aqui no Brasil, que vem um golpe de Estado em cada manifestação popular. Se milhares de pessoas estão nas ruas contra políticas de um governo, isso não pode ser considerado um mero equívoco por este governo; antes, ele, o governo, deve refletir sobre o que pode estar errado ao ponto de levar tantos às ruas!
4) A repressão violenta contra as manifestações na Venezuela, com tanques na rua, gás lacrimogêneo, grupos armados e manifestantes mortos é uma violação aos direitos humanos e deve ser repudiada da mesma maneira que quando isso acontece no Brasil, no Chile, na Síria ou em qualquer outro país. A repressão não é menos condenável se o governo que reprime se diz "socialista". Aliás, a esquerda deveria repudiar com mais ênfase nesses casos!
5) Não podemos ter dois pesos, duas medidas. Se os manifestantes do Brasil não são vândalos, mas manifestantes, os da Venezuela também. Se a repressão de Cabral e Alckmin não é "restauração da ordem", mas repressão, o mesmo vale para a de Maduro. E o mesmo digo para a imprensa de direita, que é campeã da liberdade e dos direitos dos manifestantes na Venezuela, mas quando as manifestações acontecem no Brasil, diz que são baderna, vandalismo e devem ser reprimidas e criminalizadas.
6) A liberdade de imprensa é um direito fundamental e não admite poréns nem exceções. Se o governo venezuelano tira um canal de notícias do ar e ameaça com expulsar correspondentes e repórteres de outro, merece o mesmo repúdio que qualquer outro governo que faça isso, de esquerda ou de direita. Não há democracia sem liberdade de imprensa — e não há socialismo sem democracia.
Nas últimas eleições, na Venezuela, um dos principais argumentos usados pela mídia governista e algumas lideranças chavistas contra o candidato opositor Henrique Capriles foi a "acusação" de que ele seria judeu e homossexual. Essa "revolução bolivariana" tem problemas graves e eu às vezes fico assustado com a maneira em que alguns militantes que se dizem de esquerda ou progressistas, tanto no PT e outras forças da base governista quanto no meu próprio partido e outros da oposição de esquerda, gritam "Viva Maduro!" e "Viva Chávez!" sem se questionar nada.
O século XX nos deu várias lições que precisamos estudar de novo para não cometer os mesmos erros!
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