Lições de vida e de cidadania de Pilar Ferreira
Toda vez que preciso comentar sobre as “bolsas
esmolas” oferecidas pelo Governo
Federal, ensaio parte de um sentimento de revolta, mas como não sou o dono da
verdade, rendo-me aos conceitos que são parte das manobras que atormentam e
cada vez mais tornam a miséria como um dos agravantes do nosso país. Seria bom
se o exemplo da poetisa Pilar fosse absorvido por quem governa, como exemplo
para sustentar os “pilares” da democracia brasileira, pois somos vítimas da
burocracia, configurada de exclusão social. Infelizmente, vários tipos de
preconceitos ainda agridem as pessoas e estamos vivenciando um desses pontos,
no Congresso Nacional. O Bolsa Família é um complemento que tem amenizado
situações, mas agir com preconceito, para as pessoas beneficiárias, como foi o
caso de Pilar, é brincar com os sentimentos de quem luta com dignidade para
sustentar seus entes. A poesia, por exemplo, serve de alento para Pilar, cidadã
honrada que não se deixou abater, mesmo sendo vítima de preconceito. De longe,
aplaudo a atitude de Pilar e peço a Deus que abençoe todos os que abraçam as
causas culturais, principalmente os que também tomam atitudes semelhantes as de
Pilar. Que viva a poesia e a democracia. Paz e Luz. Assim Seja! (Paulo
Vasconcellos)
A poetisa Tula Pilar, na sala de sua casa. |
Tula Pilar Ferreira gosta de se arrumar para
sair de casa. Afivela a sandália, passa hidratante nos braços e nas pernas,
combina o par de brincos com as cores da saia ou da faixa no cabelo.
Uma vez por mês, porém, o rito se
inverte. Pilar escolhe uma camiseta surrada, calça o sapato mais velho (pisando
o calcanhar na parte de trás), prende o cabelo e puxa alguns fios para cima,
como se estivessem desleixadamente soltos.
O ritual às avessas começou no
início do ano, quando ela foi recusada pelo posto de atendimento do programa
Bolsa Família. Pilar recebe R$ 64 mensais como complemento de renda para criar
a filha de 7 anos e o filho de 16. “A mulher me olhou de cima a baixo”, lembra,
imitando a surpresa que viu no rosto da funcionária. “Primeiro, disse que ali
era o Bolsa Família, como se eu tivesse no lugar errado. Quando eu expliquei
que era cadastrada, ela disse que o posto estava fechado”.
Pilar foi embora. Voltou no dia
seguinte, no mesmo horário, mas vestida com roupas velhas. Foi atendida. Desde
então, ela usa o “disfarce” sempre que precisa verificar o seu cadastro.
Disfarce porque, embora tenha dificuldades para pagar as contas da casa, a sua
figura é o avesso do estereótipo procurado pelos olhos da funcionária.
Pilar
é uma poetisa de sorriso largo. Faz sucesso nos saraus da periferia de São
Paulo e comanda alguns deles no centro da cidade. Nesses eventos, ela recita
seus versos preferidos (alguns deles parte dos seus escritos da "poesia
erótica") e dança ao som de percussão.
Seus poemas foram publicados em um
livro artesanal: “Palavras Inacadêmicas”. Uma coletânea de poemas provocadores,
como a autora. Vaidosa, esconde a idade. Depois de alguma insistência, e
tentativas de cálculo a partir do nascimento da filha mais velha, ela concede:
“sim, mais de 40”.
Pilar começou a escrever aos trinta,
depois de trabalhar por mais de duas décadas como empregada doméstica e
passadeira. Ela não via futuro nas casas de família e lavanderias, mas levou
alguns anos tomando coragem para dar o salto e deixar o emprego fixo.
Hoje, apesar do espaço conquistado,
ela paga um preço alto por sua escolha. Nesse momento deve dois meses de
telefone e energia. Se não pagar, a família ficará no escuro de novo – já
ficaram seis meses sem luz. Para as refeições semanais, Pilar garante arroz,
feijão e legumes. Carne só no fim-de-semana. Eles moram em Taboão da Serra,
divisa com a capital paulista. A casa alugada tem uma varanda, cozinha, sala,
banheiro e um quarto, que ela divide com os filhos.
A fase mais difícil foi no começo da
mudança, quando tentava entrar no mercado da produção cultural. Pilar fazia
bicos como vendedora de jazigo e de ingresso de teatro, mas não conseguia pagar
o aluguel. Enquanto a proprietária ameaçava despejo, ela perambulava pela
cidade com uma maçã no estômago, tomando água para “inchar a fruta na barriga”,
ensinamento da sua mãe para enganar a fome.
Foi em uma dessas saídas que, no
auge do desalento, encontrou um caminho. Exausta, sentou sob o vão do Masp e se
deixou “chorar como uma criança”. Entre as lágrimas, viu um sujeito
distribuindo algo e foi até ele: “Moço, essa empresa paga pra distribuir?”
Assim descobriu a revista Ocas , publicação produzida por jornalistas
e escritores voluntários para ser vendida por moradores de rua, que ganham R$3
por edição. Convidada a participar do projeto, esclareceu que não era moradora
de rua, mas ouviu do vendedor: “não é agora, mas logo vai ser”.
A frase lhe chacoalhou e Pilar
agarrou a chance. Passou a ser vendedora e, depois, coautora de textos da
revista, o que projetou seu nome no meio da chamada cultura alternativa. Com
talento, e graças à nova rede, passou a ser convidada para cursos e saraus
remunerados. Assim, conheceu a África do Sul durante a Homeless World Cup (Copa Mundial Sem-Teto) e foi entrevistada no programa Provocações, conduzido por
Antônio Abujamra, na TV Cultura.
A escolha lhe dá satisfação pessoal
e profissional, mas ainda rende sérias dificuldades financeiras. Por isso,
conta com os 64 reais mensais do Bolsa Família. Não sem conflito. Na primeira
vez que lhe perguntei sobre o benefício, Pilar achou que seria melhor não falar
do assunto. “Não é que eu tenha vergonha, mas não queria receber, tem gente que
pode precisar mais”.
A sua justificativa para continuar no
programa pode ser uma boa reflexão para os críticos, aqueles que acham que o
benefício acomoda e faz as pessoas tomarem um “caminho fácil”, abandonando a
vida economicamente produtiva. “Prefiro ficar no programa, por enquanto, para
poder correr atrás do que acredito, a pegar um emprego qualquer. Não quero ser
como essa gente que faz o trabalho meia boca pra esperar a aposentadoria”.
O programa federal e o projeto
social ajudam Pilar na batalha para construir uma carreira diferente daquela
que lhe foi atribuída aos 8 anos. Nessa idade, ela começou a trabalhar como
babá e doméstica para uma família de Belo Horizonte, Minas Gerais, onde viveu
durante a infância. Ela cresceu levando beliscões e puxões de cabelo dos
patrões quando insistia em brincar. “A patroa rasgava os meus desenhos, aquilo
me dava uma raiva”.
Cansada, certa vez se recusou a
engraxar os sapatos e se trancou no banheiro. “Fiquei umas duas horas lá
dentro. A patroa chamou o marido e ele disse bem assim: ‘sua negrinha, dê
graças a Deus que a gente te dá casa e escola”. Pilar, que estudava em um
colégio público, respondeu com um grito, por trás da porta: “Eu quero voltar
pra favela!”.
E voltou. Mas os patrões da infância
deixaram uma marca. Desde então, ela sente as mãos tremerem quando os chefes
levantavam a voz ou usam um tom mais duro. Mesmo assim, ela continuou reagindo
às situações que considerava injustas, o que lhe obrigou a trocar de emprego
diversas vezes.
Aos 17, mudou-se para o Rio de
Janeiro, para trabalhar como babá em um apartamento na Avenida Vieira Souto, a
rua da praia de Ipanema e um dos metros quadrados mais caros da América Latina.
Com essa família, conheceu a Argentina e o Chile e viveu seus primeiros
momentos de “glamour”, como ela gosta dizer. “Quando eu entrava nos salões com
a menina no colo, todo mundo olhava. Eu era bem preta do sol, e ela ruiva, dava
aquele contraste bonito. As pessoas olhavam como se eu fosse uma artista”.
Hoje, quando sente a energia dos
aplausos ao fim de uma apresentação, deseja intimamente que as antigas patroas
estivessem na plateia. “Queria que vissem onde cheguei”. Os aplausos são uma
consagração, parte importante da vitória de sua escolha, mas Pilar sabe que sua
arte ainda precisa atravessar outras fronteiras. Principalmente as cotidianas,
que são as mais difíceis de alcançar.
Na semana passada, ela foi visitar a
filha mais velha, que mudou-se para um apartamento no centro, deixando
saudades. Dormiu na casa da filha e, no fim da manhã, não encontrou o ânimo
habitual para se produzir antes de sair. No elevador, foi recebida com surpresa
por uma moradora do prédio.
- Nossa, você já terminou o serviço?
Que beleza. A minha leva o dia todo, coitada, está velha.
Pilar sentiu o tremor nas mãos que
não experimentava há anos. Suspirou fundo e achou melhor não criar polêmica no
prédio da filha.
Fonte: Yahoo
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