Os jornais que morrem, os jornais que resistem




Por Lúcio Flávio Pinto em 20/11/2012 na edição 721
Reproduzido do Jornal Pessoal nº 525, 2ª quinzena/novembro 2012



A resistência do jornalismo no Brasil tem tudo a ver com a persistência do jornalista brasileiro, pois as situações são observadas de acordo com o passar do tempo. A “morte” do JT, diz algo que norteia a sobrevivência duvidosa de um meio de comunicação que sucumbe diante de tanta dificuldade. Em linguagem concreta, o jornalista paraense Lúcio Flávio Pinto (também resistente), relata a história do agora “finado” Jornal da Tarde. (PV).


Um corredor sempre separou o vetusto O Estado de S. Paulo do seu irmão mais novo, o Jornal da Tarde. Com ironia, dizia-se que essa passagem era o túnel do tempo. Quando o JT surgiu, em 1966, o Estadão já acumulava 91 anos de existência. Estava no seu melhor período: de prestígio, de faturamento, de respeito, de profissionalismo. E começava a se distanciar do impulso conspirativo e de intervenção na política de bastidores do país, que fora a marca do segundo dos Mesquita a conduzir o jornal, Júlio Mesquita Filho, o Julinho.
O Brasil vivia na ilusão da busca por compatibilizar as reformas modernizadoras dos autoritários jovens turcos (sob a liderança de militares nem tão jovens e nem tão turcos), que tomaram o poder dois anos antes, e uma democracia mais fecunda, livre dos arranjos e compromissos oligárquicos que sobreviveram à revolução de 1930. Essa ilusão estava exatamente ao meio, dois anos depois do golpe de estado contido e a dois anos do novo golpe, o mais feroz da história republicana, simbolizado pelo AI-5.
Este era o cenário do surgimento do Jotatê, como se tornaria mais conhecido. O tratamento intimista e carinhoso tinha um antecedente, o do Jotabê. Alguns dos fundadores ou aperfeiçoadores da versão paulistana vieram do Jornal do Brasil, que incorporou e aperfeiçoou a visão (e o modo de ser) carioca de antepassados como o Correio da Manhã e o Diário Carioca, e também de publicações mais contemporâneas, como a Última Hora.
O que os mineiros não conseguiram fazer por completo no Jotabê, realizaram no Jotatê. Ofereceram aos paulistanos um espelho mais sofisticado, ao qual faziam jus. São Paulo, a mais cosmopolita das cidades brasileiras, continuava aferrada ao provincianismo do seu tempo de (auto)isolamento, ao corre-corre do processo produtivo e seu mais desafiante efeito: a veloz urbanização, que resultaria numa das maiores e mais caóticas capitais do mundo.
Um nada
De um lado do túnel, na sede do jornal, certo silêncio, paletó e gravata, contínuos rígidos, azáfama de produzir o mais volumoso jornal brasileiro. Do outro lado, gênios (raros) e candidatos a gênios (quase todos), convencidos de suas qualidades, à espera apenas do momento da revelação. Conservadorismo e vanguarda, maturidade e juventude, elementos opostos que se reuniam sob o mesmo teto, de paulistas quatrocentões (ou quase).
Queria sentir mais metaforicamente as diferenças de estilo e substância? Um exemplo era apresentado. Uma personalidade pública que chegasse a São Paulo seria submetida ao duro interrogatório do repórter do Estadão. O do Jotatê passaria ao largo e iria saber, com aeromoças e comissários de bordo, o que o personagem tinha comido, quantas vezes se levantou da poltrona, com quem conversou, o que vestia e etc. & etc. Para o primeiro, o valor documental da informação. Para o segundo, o “molho”, a intimidade, a informalidade, “a pessoa”.
O JT foi sem ter sido tudo que podia ser. É verdade que o momento de trégua dado pela ditadura à liberdade de expressão foi curta. Aquele momento luminar de 1966-68 foi oxigênio para outras inventivas, como a revista Realidade, Veja, Pif-Paf, Jornal de Debates, Reunião, O Sol, Cultura JS, Revista Civilização Brasileira e outros mais.
Diário, com expressivo volume de páginas, o JT era biscoito fino para os mais apurados paladares. Lançava-se sobre ele com a mesma paixão e curiosidade antes reservadas ao JB ou ao Correio. E lia-se com deleite quase tudo, do primor gráfico da capa a alguns textos do mais refinado estilo.
Para os interessados em artes gráficas, a leitura do jornal era uma fonte de aprendizado e prazer. Os que dedicaram seu epitáfio ao Jotatê, que circulou pela última vez no dia 31 de outubro, lembraram o menino chorando depois da tragédia de Sarriá, na Espanha, quando uma das melhores seleções nacionais de todos os tempos, comandada por Zico, Sócrates e Falcão, foi eliminada da Copa do Mundo. Aquele choro ocupou toda a primeira página do jornal. E quantos não choraram ao deparar com aquele autêntico pôster?




Mas a mais marcante primeira página de uma antologia de capas que se podia montar a partir da coleção do JT foi, para mim, um murro que Muhammad Ali tomou de George Foreman, na famosa luta que travaram na África.
A foto foi transmitida para o mundo inteiro por sinal de satélite e saiu em quase todos os jornais. Mas ninguém teve a iniciativa do editor de primeira página do JT: ele mandou ampliar ao máximo a telefoto. Mesmo com as suas deficiências, a foto congelou a expressão de dor do grande boxeador americano, até os respingos de suor do seu rosto, atingido pela luva do feroz adversário (que acabou derrotado).
Por essas iniciativas, antes de ser lido, o jornal precisava ser visto com atenção para que o leitor pudesse apreciar os produtos da imaginação dos seus criadores. Quase todas as matérias eram bem escritas, mas certamente a primeira seção a ser lida era o “Divirta-se”, um roteiro bem feito das atrações de São Paulo. Era a editoria de artes e espetáculos em ação, abrindo um novo horizonte para um público mais exigente.
Este era o segredo do Jornal da Tarde. Não precisava vender muito nem dar lucro (pagar todas as despesas já seria o suficiente). Bastava que atingisse plenamente um leitor que não encontrava o produto adequado no mercado jornalístico. Engrenando na relação, iria longe. Devastado por cortes e mudanças, o jornal se descaracterizou. Virou um nada. Estava condenado a acabar. E até que a marca dos 46 anos de idade foi apreciável.
Percurso acidentado
Dizia-se “na casa” que o Jotatê sempre foi um enjeitado pela família Mesquita. Foi criado para servir de base para o integrante do clã mais identificado com jornalismo. Ruy queria mesmo era comandar oEstadão, mas não podia romper a regra da sucessão, em favor do primogênito, que levava o nome do pai e do avô. Júlio Neto. Deduzia-se dessa situação que o jornal mais velho estava condenado ao envelhecimento e ao retrocesso, enquanto o jornal mais novo não teria espaço para se desenvolver.
Na realidade, não foi bem assim. O Jornal da Tarde se ressentiu de certa arrogância das suas principais cabeças, da presunção de superioridade e de indisfarçável desprezo pelo irmão mais velho. A questão é que o Estadão se distanciou cada vez mais do estigma de conservadorismo e anacronismo que lhe foi imputado.
Júlio Neto era muito menos jornalista do que Ruy, mas essa fraqueza se tornou qualidade porque ele tinha consciência dela. Delegou poder, transferiu tarefas e apoiou iniciativas ousadas. Apesar do percurso acidentado, O Estado de S. Paulo resiste, às vésperas dos 140 anos de circulação contínua. É a mais longa trajetória dentre os maiores órgãos da grande imprensa brasileira. Não é pouco. No Brasil,é muito.
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[Lúcio Flávio Pinto é jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)]