Arnaldo Jabor: Palavra franca de quem conhece a realidade do Brasil
O Brasil vive um momento delicado na política e o
caso mensalão passou a ser o maios evidente, no entanto, o rastro deixado por
Carlinhos Cachoeira também faz efeito colateral. O texto de Jabor expõe
variações sobre o que se tem discutido de ponta a ponta do país. Então,
deleitem-se nas palavras do crítico e tirem suas conclusões (PV).
A estética da corrupção
Por Arnaldo Jabor
Meu Deus, como a CPI do Cachoeira e o
"mensalão" do Zé Dirceu têm nos ensinado no último ano... Aprendemos
muito sobre a estética da corrupção, sobre a semiologia dos casos cabeludos. Eu
adoro o vocabulário das defesas, das dissimulações, as carinhas franzidas dos
acusados na TV ostentando dignidade, adoro ver ladrões de olhos em brasa, dedos
espetados, uivos de falsas virtudes. Quando explode um choro, é um êxtase.
Alegam, entre soluços, que são sérios, donos de empresas impecáveis. Vai-se
olhar as empresas, e nunca nada rola normal, como numa padaria. As empresas
sempre são "em sanfona", "en abîme" - uma dentro da outra,
sempre com "holdings", subsidiárias, firmas sem dono, sem dinheiro,
sem obras, vagando num labirinto jurídico e contábil que leva a um precioso
caos proposital, pois o emaranhado de ladrões dificulta apurações. Me emociona
a amizade dentro das famílias corruptas. São inúmeros os primos, tios,
ex-sócios, ex-mulheres que assumem os contratos de gaveta, os recibos falsos,
todos labutando unidos. Baixa-me imensa nostalgia de uma família que não tenho
e fico imaginando os cálidos abraços, os sussurros de segredo nos cantos das
varandas, o piscar de olhos matreiros, as cotoveladas cúmplices quando uma
verba é liberada em 24 horas, os charutos comemorativos; tenho inveja dos
vastos jantares repletos de moquecas e gargalhadas, piadas, dichotes,
sacanagens tão jucundas, tão "coisas nossas", que até me enternecem
pela preciosidade antropológica de nossa sordidez.
Adoro ver as caras dos canalhas. Muitos são
bochechudos, muitos cachaços grossos, contrastando com o "style"
anoréxico das vítimas da seca, da fome - proletários 'chiques',
'elegantérrimos' pela dieta da miséria. Os corruptos tendem para a obesidade e
parecem acumular dentro das barrigas suas riquezas sempre iguais: piscinas,
fazendas, lanchões, 'miamis'. Todos têm amantes, todos com esposas desprezadas
e tristes se consumindo em plásticas e murchando sob litros de botox, têm
filhos paspalhões, deformados pelas doenças atávicas dos pais e avôs. Aprecio
muito bigodões e bigodinhos. Nas oligarquias, os bigodes corruptos são
poderosos, impositivos, bigodes que ocultam origens humildes criadas à farinha
d'água e batata-de-umbu, camuflando ancestrais miscigenados com índios e
negros, na clara dissimulação de um racismo contra si mesmos.
Amo o vocabulário dos velhacos e tartufos. É
delicioso ver as caras indignadas na TV, as juras de honestidade, ouvir as
interjeições e adjetivos raros: "ilibado", "estarrecido",
"despautério", "infâmias", "aleivosias"... Os
corruptos amam a norma castiça da língua, palavras que dormem em estado de
dicionário e despertam na hora de negar as roubalheiras. São termos solenes, ao
contrário das gravações em telefone: "Manda a grana logo para o F.d.p. do
banco, que é um grande *#@, senão eu vou #@** a mãe deste *#&@ !!!"
Outra coisa maravilhosa nos canalhas é a falta de memória. Ninguém se lembra de
nada nunca: "Como? Aquela mulher ali, loura, 'popozuda', de minissaia? Não
me lembro se foi minha secretária ou não". E o aparente descaso com o
dinheiro? Na vida real, farejam a grana como perdigueiros e, no entanto, dizem
nos inquéritos: "Ih!... como será que apareceram R$ 10 milhões na minha
conta? Nem reparei. Ah... esta minha memória!..."
E logo acorrem os juízes das comarcas amigas,
que dão liminares e mandados de segurança de madrugada, de pijama, no sólido
apadrinhamento oligárquico, na cordialidade forense e sempre alerta, feita de
protelações, dasaforamentos, instâncias infinitas, até o momento em que surge
um juiz decente e jovem, que condena alguém e é logo xingado de
"exibicionista". Adoro as imposturas, as perfídias, os sepulcros
caiados, os beijos de Judas, os abraços de tamanduá, as lágrimas de crocodilo.
Adoro a paisagem vagabunda de nossa vida brasileira, adoro esses exemplos de
sordidez descarada, que tanto ensinam sobre o nosso Brasil. Amo também ver o
balé jurídico da impunidade. Assim que se pega o gatuno, ali, na boca da
cumbuca, ali, na hora da "mão grande", surgem logo os advogados, com
ternos brilhantes, sisudos semblantes, liminares na cinta, serenidade cafajeste
e, por trás de muitos deles, dá para enxergar as faculdades malfeitas, as
'chicaninhas' decoradas, os diplomas comprados. Imagino a adrenalina que lhes
acende o sangue quando a mala preta voa em sua direção, cheia de dólares.
Imagino os olhos covardes dos juízes que lhes dão ganho de causa, fingindo não
perceber a piscadela cúmplice que lhes enviam na hora da emissão da liminar.
Os canalhas explicam o Brasil de hoje. Eles
têm raízes: avô ladrão, bisavô negreiro e tataravô degredado. Durante quatro
séculos, homens como eles criaram capitanias, igrejas, congressos, labirintos.
Nunca serão exterminados; ao contrário - estão crescendo. Acham-se sempre certos,
pois são 'vítimas' de um mal antigo: uma vingança pela humilhação infantil,
pela mãe lavadeira ou prostituta que trabalhou duro para comprar seu diploma
falso de advogado. Não adianta prender nem matar; sacripantas, velhacos,
biltres e salafrários renascerão com outros nomes, inventando novas formas de
roubar o País.
Adoro ver como eles gostam do delicioso
arrepio de se saberem olhados nos restaurantes e bordeis; homens e mulheres
veem-nos com volúpia: "Olha, lá vai o ladrão..." - sussurram
fascinados por seu cinismo sorridente, os "maîtres" se arremessando
nas churrascarias de Brasília e eles flutuando entre picanhas e chuletas.
Enquanto houver 25 mil cargos de confiança no País, enquanto houver autarquias
dando empréstimos a fundo perdido, eles viverão. Não adiantam CPIs querendo
punir. No caso do mensalão, durante suas defesas no STF, vimos que muitos
contavam justamente com as deficiências da Justiça para ganhar. Pode ser que
agora mude tudo, depois desse julgamento histórico. Mas, enquanto houver este
bendito Código de Processo Penal, eles sempre renascerão como rabos de
lagartixa.
Fonte: Estadão.com.br/Cultura
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